Review II | O Brutalista

Com 3h35, mais 15 de intervalo, assistir O Brutalista parece um desafio, digamos, brutal. Mas vê-lo no cinema em seu glorioso formato VistaVision – adotado por John Ford e Alfred Hitchcock – é absolutamente necessário para quem ama cinema ou simplesmente acompanha os indicados ao Oscar

O Brutalista conta dez indicações, para Filme, Direção. Ator, Ator Coadjuvante, Atriz Coadjuvante, Trilha Musical, Roteiro Original, Fotografia, Edição e Design de Produção.E já posso adiantar: esta obra-prima é meu favorito para, pelo menos, Filme (sorry, Ainda Estou Aqui), Ator, Direção e Roteiro Original.

Aparentemente, o longa foi detonado por especialistas em Arquitetura e História da Arquitetura, principalmente em relação ao principal inspirador do protagonista, Marcel Breuer. Não é um filme sobre prédios e designs, mas sobre o custo da arte no capitalismo, tanto é que a dedicatória no início é para um músico, Scott Walker, amigo do diretor que tentou fazer sua arte segundo suas regras e morreu isolado e esquecido em 2019. A seguir, uma discussão com quem viu o filme, e tem, portanto spoilers.

Em seu terceiro longa, o ator e diretor Brady Corbet conta a história fictícia do arquiteto judeu húngaro László Tóth em mais uma atuação excepcional de Adrien Brody, mais de vinte anos após seu Oscar por O Pianista.

Sobrevivente do Holocausto, ele emigra para os Estados Unidos em busca do sonho americano, que a visão da Estátua da Liberdade de cabeça para baixo logo na abertura já antecipa que não será nada do que ele espera.

Essa chegada à América é filmada em enquadramentos fechados, claustrofóbicos e caóticos, que culminam nesse vislumbre da Estátua da Liberdade em meio à multidão de imigrantes no navio.

O recurso não apenas reflete a inquietação e ansiedade de Toth diante de um novo mundo, mas também economiza em cenários. A despeito de sua longa duração e ser uma produção de época, seu orçamento estimado foi de 10 milhões de dólares, muito barato para os padrões de Hollywood.

O que justifica o uso de Inteligência Artificial para criar algumas construções supostamente do protagonista, que são fictícias como ele.

A partir daqui, com SPOILERS!

Num primeiro momento, Toth é abrigado por um primo, Attila (Alessandro Nivola, de Desobediência), que chegou à América bem antes, se casou com uma católica local, se converteu, mudou de nome e abriu uma marcenaria.

A hospedagem não inclui alimentação (a não ser aos domingos), muito menos salário, e Toth é obrigado a buscar comida nas filas de sopa para pobres, onde conhece Gordon (Isaach de Bankolé, de Godfather of Harlem), que será o único amigo que fará na América.

Attila atende uma encomenda do rico Harry Lee (Joe Alwyn, de A Favorita) para a reforma da biblioteca do pai, Harrison Van Buren (Guy Pierce, indicado a Ator Coadjuvante).

Mas quando Harrison chega de viagem antes do previsto e encontra a equipe terminando o serviço, intempestivamente bota todo mundo para fora aos gritos, principalmente por ver um negro, Gordon, em sua propriedade.

Como resultado, Harry se recusa a pagar a reforma e Attila acaba culpando o primo, expulsando-o do quartinho que ele ocupava. Há uma dinâmica curiosa entre os primos, o americanizado obviamente esperava explorar o imigrado. Para tanto, quase o joga nos braços da esposa, que o acaba acusando de tentar seduzi-la.

A questão envolvendo sexo e desejo vai permear toda a trajetória de Toth, mas ele é um homem quebrado pela experiência nos campos de extermínio nazistas, e a sensação de impotência se estende em sua vida na América.

Vício

Por causa de um acidente durante sua fuga do campo de extermínio, em que quebra o nariz, Toth acaba se viciando em morfina e depois em heroína, na época acessível aos mais pobres, como afro-americanos.

Numa cena, vemos o protagonista e o amigo Gordon injetando no banheiro de um clube de jazz, com o hard bop rolando ferozmente. Muitos músicos de jazz, como o genial Charlie Parker, eram levados ao vício de heroína por conhecerem seu talento numa sociedade que os viam como menos humanos, por causa da cor.

De certa forma, isso também se encaixa em Toth, cuja condição de refugiado judeu o fazia ser visto como inferior, apesar de seu talento, não apenas pelos ricos como Van Buren, mas pela cunhada loira e católica.

Porém, depois que descobre, por meio de amigos mais esclarecidos, que sua biblioteca é uma obra de arte modernista, Van Buren procura por Toth, agora trabalhando no porto descarregando carvão.

Ele o convida para um jantar em sua casa em que é apresentado a amigos e associados. Numa cartada sagaz, ao saber que Toth tenta trazer a esposa Erzebét (Felicity Jones, indicada do Oscar de Atriz Coadjuvante) e a sobrinha Zsófia (Raffey Cassidy, de O Sacrifício do Cervo Sagrado) da Europa, o milionário pede que seu advogado Hoffmann (Peter Polycarpou, de Kaos), também judeu, interceda.

Num lance teatral, Toth leva seus convidados ao topo de uma colina durante um entardecer gélido. Ao ver a fila subindo o morro na contraluz pensei: a citação de O Sétimo Selo será apenas para o diretor se exibir, como algumas cenas de A Substância, ou haveria consequências narrativas? Há, e se vocês conhecerem Bergman, entenderão.

Lá no alto, Van Buren anuncia a intenção de construir um centro comunitário com o nome da sua mãe recém-falecida e oferece o projeto a Toth, que diz que vai pensar, mas já está enredado na teia do ricaço.

O projeto e construção passam por questões como financiamento, aprovação da comunidade e a lógica capitalista de lucrar o máximo gastando o mínimo.

Intervalo

O intervalo não é aleatório, pois os dois segmentos são distintos: poderíamos dizer que na primeira o brutalismo é a escola de arquitetura, e na final, é a brutalidade em si.

A segunda parte começa com a chegada de Erzebét e Zsofia aos EUA. A esposa já havia contado em carta que a jovem sobrinha tinha perdido a fala por conta dos traumas, mas não que ela mesma estava numa cadeira de rodas. Aliás, os três sobreviventes do Holocausto carregam sintomas físicos.

Ao invés de ser uma bênção, a chegada de Erzebét piora a vida do marido. Ela logo percebe a situação em que Toth se colocou na rede de manipulação de Van Buren, e na intimidade, a questão sexual que se observou desde seu desembarque, fica ainda mais evidente. Um acidente quase coloca fim ao projeto.

A relação entre o capitalista Van Buren e o artista Toth não é construída de forma maniqueísta ou simples. O milionário segue uma tradição dos magnatas americanos, de deixarem um legado atrás de si, como o Carneggie Hall, o Museu Guggenheim ou o Rockefeller Center – para ficar só em Nova York – e o arquiteto tenta preservar suas ideias, mesmo à custa do casamento e do seu único amigo, Gordon.

Van Buren inveja o artista, odeia o fato de não conseguir controla-lo e a coisa culmina nas montanhas de Carrara, para onde vão em busca do mármore para o altar da capela do edifício. Toda a sequencia guarda um grande simbolismo e é filmado de forma implacável por Corbet.

A cena do acerto de contas é quase um plano-sequência que busca não o virtuosismo fácil, mas sublinhar o desconforto e o desmoronamento da Casa de Usher dos Lee Van Buren.

A coda final foi vista por alguns como explicação para idiotas, mas, acho que após a montanha russa de emoções, é válido um discurso explanativo da parte de uma Zsófia já madura e para um Toth viúvo e destruído. No fim, há o reconhecimento de sua obra e talento… mas a que preço?

Marcos Kimura http://www.nerdinterior.com.br

Marcos Kimura é jornalista cultural há 25 anos, mas aficionado de filmes e quadrinhos há muito mais tempo. Foi programador do Cineclube Oscarito, em São Paulo, e técnico de Cinema e Histórias em Quadrinhos na Oficina Cultural Oswald de Andrade, da Secretaria de Estado da Cultura.

Programa o Cineclube Indaiatuba, que funciona no Topázio Cinemas do Shopping Jaraguá duas vezes por mês.

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