Mais do que a conquista da Copa do Mundo do Qatar, o que mais me deu inveja dos hermanos recentemente foi Argentina, 1985, disponível na Amazon Prime Video e vencedor do Globo de Ouro de Melhor Filme em Língua Não-Inglesa.
Nem tanto pelo filme – que colocou o país de novo entre os cinco finalistas ao Oscar de Filme em Língua Não-Inglesa – mas pelo que ele trata, que é o julgamento dos militares responsáveis pela sanguinária ditadura que se instalou na Casa Rosada entre 1976 a 1983.
É uma obra didática, que mostra os difíceis passos na direção de um acerto de contas com a História, após anos de barbárie que vitimou 30 mil seres humanos (um número emblemático como os seis milhões de judeus do Holocausto) e que terminou quando o ditador da vez, Leopoldo Galtieri, se lançou na aventura das Malvinas/Falklands, tentando ofuscar a crise econômica que ameaçava o regime. Quem acabou salvando foi Margaret Thatcher, que virou a Dama de Ferro após a surra que deu nos milicos argentinos.
Tudo isso aconteceu antes do filme começar, quando o país já era governado por Raul Alfonsin, mas os mesmo ditadores e torturadores continuavam impunes, com muitos ainda nos quartéis. O próprio ministro do Interior de Alfonsin, Antonio Troccoli, passava pano para os crimes do regime militar, quando o processo contra a junta militar cai no colo do promotor Julio Cesar Strassera, vivido pelo grande Ricardo Darin.
O maior ator argentino empresta seu carisma, talento e prestígio ao longa, sabendo que sua presença daria projeção internacional à produção, e a Academia de Hollywood confirmou isso. Se Argentina, 1985 levar a estatueta dourada, vai ser mais uma humilhação do Brasil diante dos vizinhos, e eu não vou achar ruim.
Testemunhas
Mas voltando ao filme de Santiago Mitre (de A Cordilheira, também com Darin), sem nenhum colega experiente aceitando ajudar no processo que ele mesmo considera uma causa perdida, Strassera acaba escalando um time de jovens advogados, encabeçado por Luis Ocampo (Peter Lanzani, de Maradona: A Conquista de um Sonho).
O trabalho consiste em encontrar testemunhas em todo o pais dispostas a depor contra a ditadura, enquanto muitos envolvidos com o antigo regime ainda exercem posições de poder. Não é spoiler dizer que eles são bem sucedidos, já que se trata de História, com H maiúsculo, mas para chegar a isso sofrem ameaças e intimidações de todo tipo, sem contar as testemunhas que acabam desistindo.
Enquanto isso, no Brasil, os generais de plantão se autoconcederam anistia ampla, geral e irrestrita a eles mesmos e a seus comandados, com a conivência da coalizão de forças políticas que os sucedeu, em nome de uma suposta pacificação.
O resultado está no bolsonarismo, que pede intervenção militar, acha graça na tortura sofrida pela ex-presidente Dilma Roussef nos porões da ditadura, e que, não aceitando o resultado das urnas, levou à explosão de irracionalidade e estupidez de domingo, dia 8 de janeiro.
Julgar tentativas de golpe e crimes contra a democracia não é revanchismo, mas justiça. Obviamente, tais processos precisam de transparência e amplo direito de defesa, como em todo pais civilizado.
Em 1923 (há um século, portanto), inspirado pela Marcha sobe Roma, liderada por Benito Mussolini no ano anterior (episódio emulado aqui no domingo passado, com a diferença que o futuro Duce estava na Itália, e não auto-exilado em um outro país), um ex-cabo alemão, nascido no Império Austro-Húngaro liderou um levante frustrado em Munique, no que ficou conhecido como Putsch da Cervejaria.
Vinte pessoas morreram como resultado do golpe frustrado, e o líder extremista foi preso e condenado a cinco anos de prisão. Acabou sendo perdoado pela Suprema Corte da Baviera, cumprindo pouco mais de um ano, tempo suficiente para que escrevesse um livro que hoje é banido em muitos países, incluindo o que ele adotou. Se a justiça alemão não tivesse sido leniente com Adolf Hitler, talvez a história tivesse sido outra.
Mesmo que as sentenças dos ditadores argentinos não tenham sido proporcionais a seus crimes, pelo menos houve julgamento e prisões, sem falar que a sociedade argentina tomou conhecimento das torturas, assassinatos e sequestros acompanhando o processo pela televisão.
Aqui, não tivemos isso, o que resultou na impunidade e na dissonância cognitiva coletiva, segundo meu ex-colega de faculdade Christian Dunker, que assola parte da população nos últimos anos.
Argentina, 1985 não é apenas outro ótimo filme portenho, mas uma obra oportuna para nosotros, especialmente neste momento político.
Sem anistia!
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