O FILME MAIS POLÊMICO DO ANO
Emilia Pérez vem causando furor desde a sua estreia no Festival de Cannes, em maio passado, indo da glorificação no Oscar, com suas exageradas 13 indicações, ao boicote espúrio na internet.
Infelizmente, essa é a década onde os fatos e suas análises técnicas não têm mais tanta importância, mas sim as assumidas narrativas políticas passionais, sejam conservadoras ou progressistas.
Quando um grupo emite um parecer sobre algo, há uma reprodução automática, em efeito dominó por seus seguidores, o que dificulta a reflexão individual e o edificante debate de ideias. Isso vai contra as minhas propostas críticas, como a que segue:
Partindo da perspectiva de alguém que observa a personagem-título a certa distância e, portanto, a deixa envolta por uma aura misteriosa, Emilia Pérez conta a história da personagem que nomeia o filme pelo ponto de vista da advogada Rita (Zoë Saldaña), o que até causa uma ponderação sobre qual das duas seria realmente a protagonista – assim como em O Grande Gatsby, cuja jornada é narrada por um amigo.
Frustrada com a sua profissão, certo dia Rita é contratada por um cliente que a marcará para sempre. Trata-se do chefe do narcotráfico Manitas (Karla Sofía Gascón), que a convoca para ajudá-lo, de forma sorrateira, a forjar a sua morte, de modo que ele possa assumir uma nova identidade.
Isso não se dá por uma esperada fuga de autoridades policiais, mas pela realização de uma vontade há muito reprimida: Manitas (mãozinhas em espanhol) quer viver uma nova vida como uma mulher.
A caracterização de Karla como o traficante é excelente, da maquiagem e figurino à própria atuação. E parece mesmo ser outra pessoa, já que, antes de sua transição, ela tinha uma aparência completamente diferente do criminoso.
A mudança de visual que ocorre é muito impactante, mas seu processo não é tão explorado. O que se vê é a advogada partindo numa missão de negociação com médicos para a realização de cirurgias e demais procedimentos de reafirmação de gênero, providenciando a devida documentação necessária.
A ACUSAÇÃO DE TRANSFOBIA
Militantes do movimento trans têm manifestado um excessivo repúdio a esse contexto, querendo propor um outro conceito para transgeneridade: “Basta se sentir como tal, sem precisar aderir à aparência do gênero oposto”, o que ainda é controverso, não representa a totalidade de seu grupo e não desmerece quem percorre esse caminho, como a própria Karla Sofía, a primeira atriz trans indicada ao Oscar justamente por seu papel nesse filme.
É exatamente por esse marco, aliás, que havia uma expectativa de que sua conduta fosse completamente ilibada, como um animal exótico bem adestrado, sem direito a deslizes humanos.
Porém, conforme vasculhado em suas redes sociais, foi constatado que ela já havia emitido opiniões controversas. Logo – para o deleite de pessoas contrárias à indicação de uma mulher trans ao Oscar – muita gente dita progressista tem promovido o seu linchamento virtual.
É curioso que as palavras de Gascón na internet causem mais indignação do que uma agressão física de um ator a outro, como aconteceu no próprio palco do Oscar, cujo ato teve manifestações acaloradas de defesa.
Nota-se que, para parte da sociedade, as palavras valem mais do que as ações. Recorda-se, por exemplo, que o consagrado diretor Pedro Almodóvar tratou muitas vezes, em sua filmografia, de personagens transgênero que algumas vezes foram interpretadas por atores que nem são trans, como Gael García Bernal em Má Educação, e isso sempre foi acolhido pela audiência como um exercício de empatia.
O bom disso tudo, pelo menos, é que a exigência pós-moderna do discurso político sempre acima da expressão da arte parece começar a perder forças, com as distribuidoras não se acomodando mais na defesa de seus filmes somente pelo tema tratado ou por conterem personagens que sinalizam pautas identitárias, como se isso os blindassem de um parecer crítico. Tomara que finalmente possamos nos distanciar do já batido “quem não gosta disso é preconceituoso”.
O MUSICAL OPERÍSTICO
Sendo em parte inspirado pelo livro Écoute (Escuta), do francês Boris Razon, o seu conterrâneo, o cineasta Jacques Audiard planejava montar uma espécie de ópera.
A ideia de tomar os palcos até ter dado lugar ao desenvolvimento para as telonas, mas seu clima foi mantido, ou seja, a trama é contada em formato musical, o que justifica alguns direcionamentos ora espetaculares, ora peculiares.
Mas nem por isso o que se assiste é um musical clássico, que remete ao teatro e sim um musical moderno, que concerne mais a uma junção de videoclipes, regados de coreografias pujantes.
Elas são concebidas pelo excelente Damien Jalet (da refilmagem de Suspiria) e contrastam com músicas muito introspectivas de Camille Dalmais – que não causam efeito de engajamento, mas de contemplação e até de estranhamento, como em A Sagração da Primavera, de Stravinsky.
Destaca-se o número La Vaginoplastia, de gosto um pouco duvidoso. Há somente essa e mais uma música em inglês, todas as demais são em espanhol, afinal, a história se passa no México.
A popstar Selena Gomez (que curiosamente é neta de mexicanos), com experiência nos palcos, se sai muito bem na performance de uma delas: Mi Camino, que é uma das poucas sem carga melancólica e até concorre ao Oscar de Canção Original.
No entanto, seu semblante infantojuvenil torna difícil acreditar que sua personagem seja esposa de Manitas e depois algoz de Emilia.
O estilo conceitual da obra é acentuado pela fotografia de luzes e cores vibrantes e edição dinâmica, cujo visual esplêndido se forma em detrimento de um roteiro com frases rasas, proferidas por personagens com uma expressão melodramática novelesca. É uma escolha da direção, que foca num âmbito mais plástico e menos textual, o que pode satisfazer ou deixar a desejar.
A ACUSAÇÃO DE XENOFOBIA
Há quem critique a escalação das atrizes, afinal, Saldaña é descendente de porto-riquenhos e dominicanos, e Gascón é espanhola. Tal indignação é até compreensível, quando se analisa seus sotaques – seria o equivalente a personagens cariocas e paulistanos com sotaques trocados.
Para quem ouve de fora, porém, a diferença é sutil, então não chega a ser um desastre inaceitável como tanto pintam.
As reclamações dos detonadores do filme se estendem para a problematização da estereotipada criminalidade do México, ainda mais após o diretor ter assumido em entrevista não ter se preocupado em se aprofundar na cultura local, já que não era sua proposta.
Dá para entender o descontentamento, assim como às vezes incomoda ver um Brasil reconhecido somente por samba, futebol e também criminalidade. Essas características não deveriam ser predominantes na sua definição, mas também é inegável que elas existam.
De fato, o problema é que vários filmes constantemente moldam o imaginário coletivo somente desse modo. Mas isso não é um ponto a ser considerado de forma individual e sim como na indústria cinematográfica no geral.
Então, que cada artista continue se expressando como julgar conveniente, até buscando alguma consciência social, mas sem ser censurado por seu trabalho. Se esses parâmetros fossem estabelecidos anos atrás, não teríamos hoje ótimos filmes sobre a Grécia, o Egito e por aí vai.
Com o passar do tempo, visões diversificadas acrescentam ao repertório audiovisual da História, sem desqualificar os méritos do que já foi feito. O próprio O Poderoso Chefão foi boicotado por Frank Sinatra, pelos mesmos motivos que alegam os críticos de Emília Pérez, guardada a sua proporção.
Hoje, quase nada se fala mais a respeito. Talvez, algo que devesse ser debatido é o fato de que, para concorrer a categoria de Oscar Internacional, fosse mais coerente que cada país escolhesse um filme que trata de seu país e é falado no seu idioma.
A MORAL DA HISTÓRIA (COM SPOILERS)
O segundo ato do filme começa com morais da história precocemente definidas, nítidas como numa fábula. O que, por sinal, uma ala de conservadores tem encarado como apologia à transição de gênero para jovens em desenvolvimento.
Além de ser tratado que o passado não pode ser renegado, fica a lição: “Quem nega a própria essência causa mal a si e aos outros.”
Rita reencontra Manitas, anos depois, já como Emilia Pérez. Ela lhe atribui uma nova incumbência: propiciar contato com seus filhos, como se a nova mulher fosse uma prima distante da família.
Se por um lado Emilia percebe que não é possível se desconectar totalmente de sua vida anterior, por outro, busca se redimir socialmente, contribuindo com a busca de desaparecidos, vítimas do cartel mexicano.
A moral da história realmente soa um pouco forçada, e a situação se intensifica em um último ato de proporção absurda, com a ex-criminosa sendo praticamente beatificada em praça pública – uma conclusão poética para seu arco de redenção, mas que soa demasiadamente fantasioso.
Curiosamente, no seu passado privado, Gascón cometeu atos considerados piores do que os crimes cometidos por Manitas em Emilia Pérez, de acordo com beatos modernos. Ela havia debochado de celebridades em suas redes sociais.
Por ironia do destino, uma delas seria sua futura colega de elenco, Selena Gomez. Isso sem contar outras bobagens publicadas, como o fato de uma edição do Oscar celebrar filmes fora do eixo eurocêntrico, de haver uma alta taxa de imigração muçulmana em seu país e reclamar do imaculado movimento Black Lives Matter.
O CANCELAMENTO DA PROTAGONISTA
Quando se depara com algo até então atípico, a maioria das pessoas também reage de forma hostil. Porém, depois de um tempo, tudo acaba sendo aceito com maior naturalidade.
É fato bem comum que mulheres trans e drag queens são ácidas em seus comentários sobre os outros, vide as batalhas de deboches em RuPaul’s Drag Race, a conduta cínica da Vera Verão em A Praça é Nossa, e de outros programas consumidos por essa comunidade, como o Fashion Police, com a saudosa e sarcástica Joan Rivers.
Mas quando isso acontece em plena campanha para o Oscar, o clima fica tenso. Karla Sofía foi oficialmente cancelada. Infelizmente, não poderá mais promover o seu filme para as premiações. Que a atriz seja forte para encarar esse momento e que não seja lembrada depois no Setembro Amarelo, do jeito que a hipocrisia gosta.
É bastante revoltante e preocupante que a sociedade endosse o antiético vasculhamento de postagens antigas em redes sociais para validar empregos e demais condutas do presente.
O moralismo religioso de outrora foi ocupado pelo moralismo progressista, tão impiedoso quanto ou até mais. Ninguém está a salvo. A própria Fernanda Torres sofreu um baque recente, por terem trazido à tona que ela já se caracterizou de forma caricata como uma negra há uns vinte anos.
Aliás, a assessoria de seu filme, Ainda Estou Aqui, foi acusada por Karla Sofía de promover o seu achincalhamento – o que não condiz com a realidade, já que o Brasil naturalmente adora malhar Judas.
Mas, qualquer pessoa em seu lugar também desconfiaria disso, afinal, trata-se do único filme que também concorre ao Oscar nas categorias principal e Internacional. E é um filme autossuficiente, que não precisa despertar em seus torcedores a ira contra a concorrência. Joguemos limpo, só enaltecendo o nosso lado!
TIRANDO AS PRÓPRIAS CONCLUSÕES
Enquanto isso, que a proposta audaciosa de Emilia Pérez seja genuinamente apreciada à sua medida, sem a euforia descabida pelo surgimento de um filme que dispensa a ânsia por realismo e se joga na fantasia e também sem haver exigência de como ele deveria ser e como deveria tratar determinados assuntos.
Vou assistir. A sinopse é desafiadora.
Obrigada Bruno