Charlie Kaufman roteirizou alguns dos filmes mais desafiadores dos últimos anos no cenário norte-americano, de Quero Ser John Malkovich a Anomalisa, histórias que manipulam o tempo, brincam com a metalinguagem e questionam a condição humana a partir da sensação de pertencimento dos personagens. Sua filmografia enquanto roteirista acabou consolidando sua imagem de autor, já como diretor, Kaufman ainda parece caminhar preso a alguns truques para facilitar ao espectador, vide o nome do hotel em Anomalisa.
Em Estou Pensando em Acabar com Tudo, que estreia nesta sexta-feira, 4 de setembro, na Netflix, Kaufman nos brinda com aquele que talvez seja seu filme mais difícil de ser definido. Não é a toa que ele o recheie com referências, não só cinematográficas: mais uma vez estão ali as facilidades para o espectador mais desatento. E confiem em mim, esse não é o tipo de filme que você irá ver somente uma vez.
Se lá em 1974 John Cassavetes realizava uma das análises mais cruas e realistas sobre a condição da mulher/mãe/esposa em Uma Mulher Sob Influência, aqui Kaufman nos entrega, ao seu modo, um dos filmes mais intrigantes e desconfortáveis do ano e que, de certa forma, também propõe uma análise do papel da mulher, repleto de ironias e metalinguagens que fariam David Foster Wallace ressuscitar para aplaudi-lo.
A diferença é que, no clássico de Cassavetes, o estranho parecia residir na Mabel de Gena Rowlands e percebíamos aquilo junto dos demais personagens (a cena da macarronada deixa claro como ela não estava bem). Aqui, a jovem interpretada pela ótima Jessie Buckley nota todo o estranhamento ao seu redor (também numa cena à mesa!) e quebra a quarta parede, não de modo descarado como a Fleabag de Phoebe Waller-Bridge, mas de forma bem mais sutil, indo até de desencontro com a pretensão de Kaufman.
Voltando às referências, Kaufman toma emprestado as palavras da crítica americana Pauline Kael acerca dos exageros de Gena Rowlands ao retratar uma mulher esquizofrênica em busca de sua libertação. Essa crítica, de certa forma, pode recair sobre Estou Pensando em Acabar com Tudo. Sem sutileza e novamente de forma pretensiosa, Kaufman nos desafia a ler e questionar seu próprio filme por uma perspectiva que já parece vir sinalizada (e isso pode ser um problema). Por outro lado, é uma muleta bem menos óbvia que ele busca para elucidar aonde quer chegar – ou por onde devemos ir.
Ao final, você pode fazer como Pauline Kael e criticar os excessos ou então embarcar na proposta ousada de Kaufman que, de modo bem mais sutil em seu subtexto (e aí está o que me fez gostar tanto do filme, ainda mais na segunda visita), fala também sobre o tempo (e como ele passa rápido), relacionamentos (os que não valorizamos e os que não somos valorizados) e também sobre a velhice de nossos corpos (um dia tão belos quanto uma sorveteria no meio do nada, outro dia tão necessitados de algo para chamar atenção como um balanço novo na frente de uma casa velha).
Confira o trailer de Estou Pensando em Acabar com Tudo:
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