Review | Grande Sertão

GRANDE SERTÃO, PEQUENAS MUDANÇAS

Após uma produção conturbada afetada pela pandemia e reconhecida no Festival de Críticos da Estônia em novembro passado, finalmente está em cartaz nos cinemas o filme Grande Sertão, uma reimaginação das páginas do memorável romance nacional moderno homônimo (seguido pelo termo Veredas), que conta a trajetória de Riobaldo, um professor que se torna um jagunço e parte para confrontos armados, ao passo que faz digressões existenciais.

 

A personagem célebre é interpretada pelo ótimo Caio Blat, que reprisa o papel, após tê-lo assumido numa peça teatral experimental minimalista em 2017, cujo palco era uma atrativa instalação artística. Desde então foi que começou o seu projeto de cinematização da obra, cujo resultado deve ser conferido agora.

HÁ ALGO FAMILIAR, ALÉM DO LIVRO

Nos anos 1990 e 2000 era comum se deparar com dramaturgias Shakespearianas transpostas para o cinema com o texto quase integral em enredos adaptados a tempos e espaços  modernos (geralmente os EUA da virada do milênio), tal qual no icônico Romeu e Julieta, de Baz Luhrmann, em 1996, protagonizado por Leonardo DiCaprio; ou ainda no menos popular Hamlet, dirigido por Michael Almereyda, em 2000, com Ethan Hawke no papel da personagem-título.

 

Outra tendência notável no cinema pop, na década seguinte, foi a exploração à exaustão de distopias, como as franquias também advindas da literatura (ainda que adolescentes) Jogos Vorazes e Divergente, impulsionando os olhares tanto crítico-sociais quanto fantasiosos de jovens cheios de otimismo e energia para a expressão de suas revoltas contra o poder estatal.

UM CINEMA QUE RESGATA O ATEMPORAL PARA RESPONDER AO SEU TEMPO

No Brasil, essa segunda moda tomou força em produções audiovisuais à medida que se intensificou o declarado posicionamento político cada vez mais radical da população, dividido em dois pólos extremamente contrários (graças ao efeito de bolha alienante causado por algoritmos de repetições de conteúdos unilaterais em redes sociais digitais).

 

Medida Provisória, de 2020, sob o comando de Lázaro Ramos, é um dos filmes que se alimentou em inspiração artística e especulação comercial desse clima de paranoia com qualquer movimentação do espectro partidário opositor.

 

Tendo por base tal contexto social, cujo público acaba almejando refletir sobre futuros assustadores em contos distópicos, mais o exemplo da experiência americana bem sucedida de disseminação de literatura consagrada em nova roupagem, é mercadologicamente propício e até seguro que se construa um filme nacional sob esses moldes.

A RELEITURA DISTÓPICA DO MARCO LITERÁRIO

Eis, portanto, Grande Sertão, de Guel Arraes, diretor também do aclamado O Auto da Compadecida (2000), que propõe agora uma releitura estética do marco literário de 1956, de Guimarães Rosa, história já presente em ambientação literal nas telas dos cinemas num filme em preto e branco de 1965 e, vinte anos depois, nas telas das tvs, na famosa minissérie de 25 episódios (já em cores), com Tony Ramos e Bruna Lombardi nos papeis de destaque.

 

Por ser a terceira vez que o conteúdo da publicação ganha imagem e som, é bem vinda essa versão diferenciada, apesar do primeiro impacto com seu visual contemporâneo causar um óbvio estranhamento. O sertão atual não trata mais de uma região semiárida, mas do nome de uma comunidade suburbana periférica, isolada por uma gigantesca muralha. E o confronto entre jagunços foi trocado pela disputa de poder entre policiais e bandidos. Além disso, há também uma inusitada celebração de tecno-funk, com um público bem estilizado em inspirados cenários apocalípticos.

O RESPEITO AO MATERIAL ORIGINAL

Apesar de tudo isso, o filme não é nada formulaico, nem revisionista-moralista, ainda bem. Ele não “atualiza a história para novas gerações”, como estamos fartos de ver em patéticos remakes hollywoodianos. Ao contrário, enfatiza-se o quão rico é o que Guimarães escreveu, com discussões humanas atemporais e de absorção a diversas situações.

 

Todas as bases originais para discussões foram mantidas: a religiosa, com o pacto Faustiano, a psicológica, com a dualidade da personalidade humana, a reflexão sobre o amor além do sexo e (pasme) o papel do gênero (que está tão em voga e pode atrair alguma atenção polemizada, mas que não é algo feito só para o agora).

 

Há policiais honestos e corruptos, bandidos que se rebelam por sobrevivência e os sádicos por violência. As divagações sobre o quê e/ou quem é certo e errado, numa trama de traições, até direcionam a uma perspectiva, mas não a consolidam, permitindo quem assiste a pensar e, talvez, não chegar a alguma conclusão, o que num mundo de tantas e estranhas certezas pode ser bom.

A POÉTICA DA PRODUÇÃO

Com edição dinâmica, típica na filmografia de Arraes, o filme mantém um ritmo bem equilibrado entre memórias da infância, adesão à gangue na fase adulta e o narrador presente, contando a história para a audiência e/ou para uma entidade diabólica.

 

Tudo isso com uma fotografia de movimentação condizente com a sensação eufórica transmitida e de iluminação de texturas cruas e que brinca com um vermelho de trevas se alastrando sutilmente mais e mais ao longo de suas quase duas horas de duração. A sonoplastia também é quase excelente, se não fosse por um trabalho de dublagem muito nítido feito por alguns atores que parecem não habituados à prática.

DE GUIMARÃES A GUEL, PERSONAGENS E ELENCO CONTROVERSOS

Infelizmente, reitera-se a de Luisa Arraes (que também participava da peça de 2017), numa caracterização bem equivocada de Diadorim, nada andrógina, comprometendo o aprofundamento dramático e a densidade possível do debate em torno da sua relação interpessoal e passional com as demais figuras e a grande reviravolta de sua trama, algo que foi perfeitamente trabalhado até mesmo na animação Mulan (1998).

 

Por outro lado, ressalta-se, além do perfeccionismo gestual e de sotaque bem desenvolvido do incrível Caio Blat (Um Anjo Caiu do Céu a As Melhores Coisas do Mundo), também a personificação de Luís Miranda (Terça Insana a Mister Brau) como o volúvel Zé Bebelo, Rodrigo Lombardi (Caminho das Índias a Sweeney Todd – o Musical) na medida como o líder Joca Ramiro e Eduardo Sterblitch (Pânico na TV a Beetlejuice – o Musical) numa das melhores personificações do mal já vistas, em fisicalidade e oralidade, com seu Hermógenes, um deleite de assistir.

 

Assim como o autor do livro vislumbrava discussões desprendidas de seu tempo, o cineasta apresenta um filme que, provavelmente, só será apreciado de acordo quando as pessoas se abrirem para a humildade da autocrítica e absorverem a arte como propulsora para a transcendência pessoal e não só reafirmadora de um direcionamento social.

4 thoughts on “Review | Grande Sertão

  1. Excelente review, Bruno.
    Obrigada por compartilhar sua visão crítica desse filme tão aguardado.
    Estou ansiosa para assistí-lo.

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