Review II | Anora

Vencedor da Palma de Ouro de Cannes em maio de 2024, Anora estava previsto para entrar em cartaz nos cinemas brasileiros em outubro passado (o que já é um longo intervalo) mas só agora, após a divulgação de suas seis indicações ao Oscar (incluindo Melhor Filme), que sua distribuidora aqui no Brasil resolveu, “brilhantemente”, liberá-lo oficialmente para o público.

Anora é o nome da dançarina erótica e garota de programa vivida pela atriz Mikey Madison (Era uma Vez em Hollywood), que é chamada para atender o recém-adulto Vanya (Mark Eydelshteyn), um bilionário de família russa, que está curtindo uma passagem pelos EUA em meio a noitadas festivas seguidas por dias jogando videogame.

A prestação de serviço entre ambos é repetida várias vezes, culminando no desenvolvimento de uma paixão, até que, num estalar de dedos, eles resolvem se casar em Las Vegas.

Esse primeiro ato do filme é muito frenético, vibrante e otimista. É cheio de músicas envolventes, numa fotografia muito colorida e editado com cortes rápidos, convencendo que tudo o que se vê é realmente fluido e espontâneo.

A FUTILIDADE É UMA DELÍCIA ARRISCADA

Naturalmente, engajamos com a protagonista no moderno conto de fadas, que a salva de uma vida marginalizada e lhe apresenta ao máximo do luxo que o capital pode propiciar, com a segurança de uma relação romântica envolvente, bem a la Uma Linda Mulher (1990).

Mas lembremos que Richard Gere era um quarentão bem-sucedido, enquanto Vanya não passa de um mero herdeiro de 18 anos na líquida era das redes sociais virtuais que, no fundo, só quer ser aprovado pelos amigos e pelos pais.

Sean Baker é um diretor independente, conhecido por explorar de forma crua e com uma pitada de humor, a marginalidade bem à beira do glamour tão propagado da sociedade americana.

Seja pelas crianças pobres de Orlando que desconhecem a Disney World, em Projeto Flórida (2017), seja pelo ex-ator pornô tentando manter a vivacidade de outrora, em Red Rocket (2021).

Em Anora não seria diferente: a família de Vanya não aceita o casamento do filho com Ani (apelido da protagonista) e envia a ele seus capangas para que o façam anular o matrimônio.

É aí que a leveza do romance sensual dá lugar a um inusitado humor ácido, com a garota resistindo violentamente à ação dos rapazes (que mais parecem os Bandidos Molhados de Esqueceram de Mim), após seu marido simplesmente fugir de um deles.

APÓS A FESTA, A RESSACA

Dentre os valentões, está o contido Igor (interpretado pelo belo Yura Borisov), único capaz de compreender e conter a histeria de Ani, talvez por estar numa posição social tão baixa e tão carente quanto ela.

Num clima de pior ressaca possível, todos partem em busca de Vanya. Não há mais luzes, músicas, diversão, alegria. Só há cansaço, raiva, indignação. O filme toma outro ritmo, com a fotografia do espetáculo se tornando mais verossímil, numa edição mais morosa, transmitindo bem a sensação de pessimismo.

O doce sonho acabou, eis a dura vida real: o que é trivial para quem despende grana, é quase impossível para quem carece dela. Ir daqui até ali não é mais simples e acessível, é difícil, demorado e enfadonho. É um baque estético contrastante a que somos submetidos, em relação ao início do filme.

UM SOCO NO ESTÔMAGO

Anora tem o mérito de ser muito divertido e nos fazer refletir sobre o quanto temos falhado enquanto sociedade, não só em aspecto de disparate econômico, mas no que tange aos valores das novas gerações:

  • A busca incessante e inconsequente por prazer imediato, em detrimento à dignidade alheia, onde o outro não passa de mais um bem de consumo descartável
  • A constante procura por validação externa
  • E o estímulo de vivência de adolescência estendida à fase adulta da vida

Merecidamente consagrado em Cannes, Anora mantém o destaque nas premiações anuais, com Madison e Borisov concorrendo ao Oscar por suas atuações e Baker por roteiro, direção e edição.

O final do filme é ardiloso e magnificamente devastador. Até há uma luz no fim do túnel, mas quando se está ferido, não se sabe mais como caminhar até lá.

Bruno Tiozo http://www.nerdinterior.com.br

Designer e acadêmico do Instituto de Artes de Campinas, propõe reflexão crítica no apreço às expressões poéticas das artes audiovisuais. Foca no Cinema ficcional, cujos filmes em mídias físicas coleciona como souvenir de universos visitados, de modo que as memórias na estante sirvam para inspirações constantes.

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