O diretor Robert Eggers disse que desde criança era obcecado pelo Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror, do Murnau, daí sua motivação para fazer o remake em cartaz nos cinemas. Conseguiu fazer jus ao clássico, além de introduzir algumas modernizações relevantes, e não estou falando nos efeitos especiais e fotografia (lindos, por sinal). E ainda lavou em conta a versão que Werner Herzog dirigiu em 1979, O Vampiro da Noite, com seu ator-fetiche=nêmesis Klaus Kinski e a estrela francesa Isabelle Adjani. Atenção: este review vai ter spoiler porque, além da história ser super conhecida, o filme está em cartaz já há duas semanas.
O Nosferatu de F.W. Murnau é uma das obras-primas do Expressionismo Alemão e do período do Cinema Mudo. A figura de Max Shreck como o Conde Orlock marcou gerações de cinéfilos, contrastando em muito com o Drácula de Bela Lugosi, que apareceria somente 11 anos depois. Lembrando que o filme de 1922 foi processado pela família de Bram Stoker e teve a maioria de suas cópias recolhidas, destruídas e só reapareceriam décadas depois, quando surgiram rolos em países periféricos, que serviriam de base para a reconstituição que conhecemos hoje.
A história se passa na década de 1830 na Alemanha, quando o recém-casado Thomas Hutter (Nicolas Hout, que ano passado fez Renfield, o servo do Drácula de Bram Stoker, interpretado por Nicholas Cage) é escalado pela empresa imobiliária de Herr Knock (Simon McBurney, de O Espião que Sabia Demais) para levar um contrato de compara até um conde que mora num castelo no Cárpatos. Seduzido pela remuneração e pela promoção no emprego, o jovem deixa a mulher Ellen (Lily-Rose Depp, filha de Johnny Deppe Vanessa Paradis em seu primeiro grande papel) aos cuidados do amigo armador Friederich (Aaron-Taylor-Jonhson, o Kick-Ass, e ponto fraco do elenco) e da esposa Anna (Emma Corrin, de Deadpool & Wolverine, uma ótima atriz, aqui, desperdiçada). Ellen é uma garota que sofre com sonhos e aflições desde a puberdade, e os sintomas só pioram com a ausência do marido.
Após uma longa jornada a cavalo, Thomas se hospeda num albergue cheio de ciganos, que se apavoram ao saber que ele pretende ir ao castelo do conde Orlock (Bill Skarsgard, que foi o Pennywise do último It – A Coisa). Durante a noite, o rapaz testemunha um ritual para matar um vampiro em sua tumba.
Eggers opta por manter Skarsgard na penumbra, e este usa uma voz sinistra com uma respiração de Darth Vader. É bem diferente dos Nosferatu anteriores e mesmo dos Dráculas de Bela Lugosi, Christopher Lee e Gary Oldman. Ao contrário dessas versões, que são atraídos pela mulher de Thomas, este vampiro já conhecia Ellen por meio de uma conexão espiritual invocada pela própria moça. Toda transação envolvendo a viagem e à assinatura do contrato é uma armação com a colaboração do patrão de Thomas, Knock, uma versão alemã do Renfield de Bram Stoker, para que Orlock complete a posse da moça.
Orlock tem que dormir em solo de sua Transilvânia, então para chegar a Ellen ele freta um barco para transportar a si em seu esquife e caixões com terra de sua pátria, sequencia igual a de Dráculoa, contada ano passado em A Última Viagem de Démeter.
Houve quem considerasse a chegada do Nosferatu à Alemanha, trazendo ratos e a peste uma alegoria da ascensão de Hitler, mas em 1922 o pais ainda vivia o começo da República de Weimar e Hitler era pouco mais que um pintor frustrado que fazia comícios numa cervejaria. Robert Eggers faz de seu Nosferatu uma força maligna primitiva impiedosa, despertado por sua vítima primordial e que é ao mesmo tempo seu calcanhar de Aquiles.
Está aí a grande diferença desta versão: o protagonismo é todo da Ellen de Lily-Rose, num papel planejado para Anya Taylor-Joy, descoberta justamente em A Bruxa do próprio Eggers. A atriz, nascida na França, como Isabelle Adjani, dá à heroína o frescor e fragilidade pedidos pelo roteiro, e faz uma atuação corporal impressionante, expondo a natureza sexual e de repressão de sua maldição. Nasce mais uma estrela nepobaby.
Quando o médico regular, Dr. Sievers (Ralph Ineson, o pai de A Bruxa), não consegue curar Ellen com os tratamentos convencionais da época, ele apela para um antigo professor, Eberhart, uma versão alternativa do Van Helsing de Drácula, interpretado por Willen Dafoe, que não apenas trabalhou com Eggers em O Farol, como fez o papel de Max Shreck, o intérprete original de Nosferatu, em A Sombra do Vampiro.
Diferente do fanático impiedoso Van Helsing imortalizado por Peter Cushing nos filmes da Hammer, Eberhart é mais um teórico que um caçador de vampiros, e na sequencia final tem uma surpreendente compreensão da missão de Ellen.
Foi Murnau que inventou que o vampiro morre à exposição da luz solar, e Mar Shreck se dissolvendo ao amanhecer é uma das mais belas cenas do cinema mudo. Eggers faz diferente e sua sequencia final também é ótima, culminando uma obra visual, sensorial e auditiva – fazendo jus à Sinfonia de Horror do subtítulo de 1922 – muito acima do que acostumamos a ver no gênero. Um triunfo de Robert Eggers.
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