Review | O Menino e a Garça

Há 40 anos, Ingmar Bergman anunciou Fanny & Alexander como o resultado de toda sua carreira como cineasta e disse que se aposentaria em seguida. Ele não cumpriu a promessa, mas o filme fez grande sucesso, vencendo quatro Oscars, incluindo o de Filme Estrangeiro, demonstrando que até os gênios apreciam um bom marketing.

Hayao Miyazaki fez o mesmo em 2013, quando lançou Vidas ao Vento, mas dez anos depois chega aos cinemas O Menino e a Garça. Não foi marketing, mas aquela irresistível necessidade de criar que move todo grande artista. E ninguém se decepcionou, e esta é a produção favorita para ganhar o Oscar de Animação deste ano.

Antes de entrar no review propriamente dito – que terá SPOILERS – já aviso: é uma nova obra-prima do diretor, que deve ser vista na maior tela e com o melhor som disponível, para se extasiar com a trilha musical de Joe Hisaishi, de A Viagem de Chihiro e Vidas ao Vento. Ou seja, numa sala de cinema.

O título original em japonês pode ser traduzido Como Vocês Vivem?, retirado de um romance de 1937, mas a história tem pouco a ver com o livro, que era um dos favoritos de Miyazaki na infância.

A ação começa em 1943 (depois da obra literária, portanto), em plena II Guerra Mundial, quando a mãe do protagonista, Mahito, morre durante um incêndio no hospital. Algum tempo depois, o garoto e o pai se mudam para o interior, onde vão morar com a nova madrasta, irmã da mãe, em uma grande propriedade rural servida por uma grande equipe de serviçais idosos.

Mahito logo percebe uma garça que parece acompanhar seus movimentos e que parece habitar uma velha torre abandonada. Ao mesmo tempo, sofrendo o luto pela perda da mãe, ele se vê numa nova cidade, com uma madrasta grávida que ele não faz questão nenhum de gostar, a despeito dos esforços dela; e numa nova escola em que é visto como filhinho do papai, com o bullying inevitável. Todo esse estresse se manifesta numa automutilação, numa sequência construída brilhantemente.

A partir daí, ficamos na dúvida se o que acontece a seguir é consequência de uma concussão ou se se ele cruza a fronteira de um mundo místico, a exemplo da Chihiro de seu filme mais famoso. No entanto, ele vê a madrasta/tia se embrenhar na floresta em direção à torre misteriosa, e ela realmente desaparece.

A garça o atrai a cruzar o portão da torre com a promessa de rever a mãe, e quando ele se fecha atrás dele, como uma armadilha anunciada, começa de verdade a viagem de Mahito.

Referências

Embora a obra seja recheada de referências à filmografia de Miyazaki e de outras obras (como os óbvios Alice no País das Maravilhas e Branca de Neve) – o que faz desta um fechamento de carreira mais adequado que o realista Vidas ao Vento – vários fatores o colocam fora da curva do que o cineasta já fez.

Por exemplo, o protagonista é um menino, com muitas referências autobiográficas, mas não só isso. Como garoto japonês, ele foi criado para reter suas emoções, e extravasa sua agressividade usando armas como um boken (espada de madeira) e arco e flecha.

Outra característica atípica, como notou Max Valarezzo do canal EntrePlanos, é a ausência de sentimentalismo, dos clímax emocionais que nos fizeram verter lágrimas em diversos filmes do diretor. A emoção está lá, mas contida, explodindo externamente nos cenários e acontecimentos do mundo fantástico.

E o final seco pode decepcionar muitos, mas é como a vida acontece, não num estrondo, mas num gemido. Ainda que pareça confuso e enigmático, tenho certeza que O Menino e a Garça ganhará a aprovação mais valiosa de todas, que é a posteridade.

É curioso que os críticos cinematográficos se refiram a Hayao Miyazaki, enquanto os fãs de anime falem Estúdio Ghibli. Embora diferentes, ambos parecem indissociáveis. No enquanto, aos 83 anos, não há muito espaço para o mestre continuar protelando a aposentadoria.

A relação do tio-avô e de Mahito em O Menino e a Garça parece uma metáfora da passagem de bastão de um criador de mundos para outro. O futuro do Estúdio Ghibli sem Miyazaki é incerto, mas aberto a possibilidades.

Marcos Kimura http://www.nerdinterior.com.br

Marcos Kimura é jornalista cultural há 25 anos, mas aficionado de filmes e quadrinhos há muito mais tempo. Foi programador do Cineclube Oscarito, em São Paulo, e técnico de Cinema e Histórias em Quadrinhos na Oficina Cultural Oswald de Andrade, da Secretaria de Estado da Cultura.

Programa o Cineclube Indaiatuba, que funciona no Topázio Cinemas do Shopping Jaraguá duas vezes por mês.

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