4 out 2025, sáb

Por coincidência, escrevo esta crítica de Pecadores no dia 13 de maio, antiga data em que os pretos brasileiros comemoravam o Dia da Abolição da Escravatura, substituída há alguns anos pelo Dia da Consciência Negra, 20 de novembro.

A troca é porque a tardia Lei Áurea é mais uma vergonha – ser o último país das Américas a deixar de tratar seres humanos como mercadorias – e a luta de Palmares representa o protagonismo preto na resistência contra a opressão do homem branco.

De certa forma, é disso que Pecadores trata, pois, tanto lá como cá, o fim da escravidão não significou liberdade para a população preta.

Escrito e dirigido por Ryan Coogler, das franquias Creed e Pantera Negra, a história se passa no Delta do Mississipi em 1932, um anos antes do fim da Lei Seca e em plena segregação nos Estados Unidos.

O jovem Sammie Moore (o estreante Miles Caton, uma revelação) trabalha na colheita de algodão ajudando no sustento da casa mas enfrenta a oposição do pai pregador em sua vocação para o blues.

Ele terá sua grande oportunidade com a volta dos primos Smoke (Fumaça) e Stack (Fuligem), vividos pelo parceiro habitual do diretor, Michael B. Jordan (fazendo papel de gêmeos), que vão abrir uma casa de blues numa antiga serraria comprada de um líder da Ku Klux Klan (isso terá consequências mais adiante).

Os irmãos se dividem numa corrida para reunir pessoas e meios para inaugurar seu clube ainda naquela noite.

Um leva o caminhão carregado de bebidas para encomendar peixe e artes gráficas (cartaz e cardápios) para o amigo chinês Bo (Yao) e a esposa Grace (Li Jun Li, de Babilônia), e visitar o tumulo da filha e reencontrar sua ex, Annie (Wunmi Mosaku, das séries Loki), uma feiticeira e cozinheira de mão cheia.

O outro vai atrás do músico Delta Slim (Delroy Lindo, de Destacamento Blood), do leão de chácara Broa de Milho (Osmar Brenson Miller, da série Ballers) e encontra sua ex, Mary (Hailee Steinfield, a Kate Bishop de Gavião Arqueiro), uma mestiça quase branca, o que nos tempos da segregação era sinônimo de encrenca.

Surrealismo

Isabela Boscov colocou Pecadores numa categoria que ela chamou de surrealismo negro, em que se enquadram a série Atlanta e os filmes de Jordan Peele (Corra!, Nós e Não Olhe para Cima). Eu incluiria ainda as minisséries Lovecraft Country e Underground Railroad.

Coogler usa arquétipos do sul americano como ingredientes de sua ópera grand gignol: a exploração dos negros na colheita de algodão, o pastor pilar da comunidade, mas repressor da criatividade, o músico de blues alcoólatra e desiludido, a feiticeira-xamã, os brancos escrotos da KKK mas, acima de tudo, a arte afrodescendente.

O filme abre com uma narração em off sobre criadores que, com sua arte, conseguiam romper as tênues barreiras entre os mundos espirituais e do tempo-espaço, e diversas culturas. Esse papel, em Pecadores, é de Sammie.

Na primeira vez em que Miles Caton solta a voz, nossa reação é a mesma de Michael B. Jordan no filme: boquiaberto. Um bluesman nato, que descobre em uma única noite literalmente mágica, a epifania da música tocada em público, a liberdade e o amor de uma mulher.

Não tem como não lembrar de A Encruzilhada, filme de 1986, com o mesmo Ralph Macchio de Karatê Kid, que explora a lenda de Robert Johnson, o bluesman que teria vendido a alma ao diabo para se tornar o melhor. Coogler faz o oposto, fazendo do blues um instrumento divino, mas cobiçado pelo agente do Mal.

 

Ameaça

É justamente a ameaça que surge do lado de fora da festa no clube dos gêmeos, na figura enigmática de Remmick (Jack O’Connell, de Back to Black), que após fugir de um grupo de nativos Choctaw busca abrigo na casa de um casal de rednecks, com resultados trágicos.

Se o filme é classificado como terror, é por conta de Remmick e seu, digamos, convertidos. O conflito entre os pretos sitiados no clube e os invasores é praticamente uma batalha cultural, já que o líder do lado externo tem origem irlandesa, entoa canções do país e sapateia o riverdance, o sapateado típico que é uma das influências do tap dance americano.

E esse samba do crioulo doido funciona, com sua mistura de gore, ação, comédia e música que diverte, cria suspense, emociona e até ensina, resultando em um grande cinema.

Michael B. Jordan consegue dar personalidades diferentes aos gêmeos Smoke e Stack; as mulheres Li Jun Li, Wunmi Mosaku, Hailee Steinfeld e até Jayme Lawson (o interesse romântico de Sammie) estão ótimas.

Os coadjuvantes Delroy Lindo e Omar Benson Miller dão conta de seus personagens mais estereotipados. O verdadeiro protagonista, Miles Caton, é desafiado nesta sua estreia e carrega bem o fardo.

No final, somos brindados com a participação do grande Buddy Guy, a última lenda do blues ainda viva, que fez apresentações memoráveis no 150 Night Club do Maksoud Plaza. Não esqueça das duas cenas pós-créditos!

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