Pé grande, abominável homem das neves, ieti ou até mesmo yeti, provavelmente você já ouviu falar alguns desses nomes e conhece esta lendária figura monstruosa que habita as mais altas montanhas do Himalaia. Se o personagem não faz muito sucesso aqui no Brasil – talvez para quem seja fã de Chapolin e se lembre do “abomineve homem das naves” – a animação PéPequeno consegue dialogar com todos os públicos, graças à sua mensagem universal que prega a aceitação das diferenças. Mas não só.
Em um período onde o Trumpismo chegou ao poder nos Estados Unidos e com um conturbado ano eleitoral no Brasil, um filme voltado para as crianças que vai na contramão de discursos de ódio e de intolerância merece atenção.
Quando olhamos para a ficha técnica do filme e notamos os cinco nomes envolvidos no roteiro, logo pensamos: por que tanta gente envolvida no roteiro de uma animação? É aí que a dupla de diretores do longa, Jason Reisig e Karey Kirkpatrick (responsável pelos roteiros de A Fuga das Galinhas e Os Sem-Floresta), entra para harmonizar estas ideias tão atuais e temas importantes e conciliá-los de forma homogênea e que ainda desperte o interesse das crianças.
Por se tratar de um filme voltado para o público infantil, estão ali também os momentos mais engraçadinhos, com números musicais – onde a dublagem por vezes não nos deixa entender o que é cantado – personagens rolando na neve de maneira acrobática, pulando de alturas enormes de maneira espalhafatosa – ou com medo de pular – e até uma cabra das montanhas que só grita e assusta todo mundo.
É preciso situar o leitor deste review para que este possa entender a importância do discurso de PéPequeno. Na história, Migo é um jovem ieti que habita as montanhas com toda sua comunidade. Lá, os seres humanos (ou pé pequenos) são tidos como lenda e descobrimos, por meio de uma canção, que os ietis vivem em harmonia sem questionar nada do que está escrito nas Pedras – que ficam aos cuidados do Guardião das Pedras, uma espécie de Moisés bíblico que protege os mandamentos. Note que ele possui até um cajado.
Até que um dia Migo vê um “pé pequeno” e volta desesperado à vila para contar a novidade, mas é banido pelo Guardião por difamar uma suposta verdade absoluta. Com isso, Migo passa a questionar as pedras que ditam o comportamento de todos ali, que contam desde como os ietis foram criados, até como a montanha em que vivem se sustenta, seria tudo uma grande mentira?
Em sua jornada em busca do homem que viu, Migo se junta a outros ietis menos quistos no vilarejo – justamente por pensarem diferente dos demais – e que o recebem aos cantos de “um de nós, um de nós”, numa referência ao clássico Monstros, de 1932, onde algumas aberrações de um circo também são subjugadas por humanos.
Vlogger
É quando Migo conhece Percy, um vlogueiro – ou vlogger –, que outra camada é adicionada ao roteiro de PéPequeno. A princípio, não nos identificamos com Percy por ele representar um explorador dos animais e do meio ambiente, que faz isso apenas por fama e curtidas, e é justamente esse o motivo de sua ida ao Nepal: filmar um ieti para que seu vídeo viralize, nem que para isso seja preciso vestir uma fantasia fake.
Com o tempo, percebemos que Percy também tem um lado bom – como qualquer ser humano – e notamos isso justamente quando ele e Migo precisam se comunicar e vencer a barreira das línguas diferentes. Aos ouvidos de Migo, a voz de Percy parece mais com balbucios de um bebê, enquanto a voz de Migo, para Percy, são rugidos de uma fera, são momentos cômicos e fofos que nos tiram boas risadas.
A partir desta relação, mais uma vez a história bate na tecla do medo do desconhecido. E é justamente quando Migo retorna com Percy ao vilarejo, para mostrar que estava certo, que percebemos toda a preocupação do Guardião com a presença de um humano ali, e ao som de um rap entoado pelo próprio Guardião, notamos que até mesmo a maior das mentiras guarda alguma verdade.
O Guardião não está de todo errado com sua visão sobre a humanidade. Conforme vamos vendo as figuras nas paredes da caverna, e prestamos atenção à letra da música, sentimos uma imensa vergonha por sermos uma raça tão destruidora, e é completamente plausível que sejamos vistos como ameaça e até como monstros pelos ietis. Afinal, desde os primórdios, não atacamos os animais e o meio ambiente? Até mesmo os imigrantes são tratados como se fossem uma sub-raça hoje em dia.
A presença de Percy na comunidade dos ietis expande a todos o questionamento que antes se limitava a Migo e ao grupo que estava com ele. Entra em cena a crítica a imposições feitas por dogmas religiosos – sem precisar apelar para heresias – e fica muito claro como ocultar certas verdades por medo não é a melhor escolha para nenhum dos lados.
É bacana também que a história de PéPequeno não precisa de um vilão para ter clímax ou temermos pelos personagens: o maior desafio é subverter a lenda dos ietis de forma didática para que as crianças possam enxergar o perigo que é conviver em uma sociedade onde supostas verdades são vendidas como absolutas enquanto outras são ocultas na mais obscura das cavernas, deixando qualquer espécie presa em uma bolha de ignorância e medo.
Em suma, PéPequeno é uma animação que sabe aliar personagens carismáticos e engraçados a uma história repleta de camadas que geram questionamentos importantes àqueles que estão começando a encarar o mundo. Um filme que conversa com as gerações futuras de maneira simples, didática e sem precisar doutrinar, afinal, a dúvida e a busca por conhecimento são as maiores virtudes que podemos ter.
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