A marionete e o pedido de desculpas por algo que ninguém se importa
Entre 1881 e 1883, o italiano Carlo Collodi publicou em um jornal uma história dividida em 36 episódios com lições de moral para crianças, entre elas a importância de obedecer aos pais, de seguir regras de boa convivência e de estudar na escola. Esses capítulos foram unificados, dando origem ao livro As Aventuras de Pinóquio.
Durante os séculos seguintes, a história foi adaptada inúmeras vezes para o cinema, mas foi a versão em animação concebida com primor por Walt Disney, em 1940, que cravou o famoso conto no imaginário popular.
Porém, nos últimos anos, diversas versões do clássico de Collodi vêm ganhando as telas. Algumas bastante inusitadas, como a versão de Roberto Benigni (A Vida é Bela) e uma outra animação digital – de qualidade duvidosa – produzida pela Lionsgate, em cartaz nos cinemas brasileiros.
No final do ano, vale lembrar, a Netflix traz ao público outra nova visão do conto, desta vez em stop motion, dirigida por Guillermo Del Toro.
A Disney já havia sido abordada, em 1985, por Steven Barron e recusado a sua proposta de recontar essa história, fazendo com que o diretor tocasse o seu projeto com a New Line, lançando então sua versão em 1996 (ano em que a Disney lançou seu primeiro remake de animação clássica em live action, isolado dessa tendência atual, 101 Dálmatas).
Mas agora o estúdio resolveu não ficar de fora e produzir (mais) uma releitura, um remake de sua clássica animação, em live action, estratégia que vem repetindo nos últimos anos, com orçamentos milionários. Assim, reuniu o diretor Robert Zemeckis e o astro Tom Hanks nessa quarta parceria da dupla.
Mas o que rendeu bons frutos em Forrest Gump e Náufrago não se repete aqui. O ator interpreta Gepeto, um carpinteiro órfão de filho, que entalha uma marionete, desejando que ela adquira vida para suprir a ausência de seu menino.
Recentemente, o astro do cinema declarou ter se arrependido de interpretar um gay, já que não é gay como o personagem, no filme Filadélfia, de 1994, apesar do papel ter lhe rendido um Oscar. Espera-se que ele não repita isso pela atuação a la Terra Nostra em Pinóquio, já que é americano, diferente de seu personagem italiano.
A história segue praticamente a mesma linha narrativa do clássico de 1940. A Fada Azul (Cynthia Erivo) atende ao pedido do senhor solitário, dando vida a Pinóquio (Benjamin Evan Ainsworth) e encarregando o Grilo Falante de ser sua consciência (dublado por Joseph Gordon-Levitt de 500 Dias com Ela).
Assim, a alegria volta a tomar conta da família de Gepeto, composta pelo gato Fígaro e a peixe Cléo (ambos personagens desnecessariamente digitais). Caminhando pelo vilarejo, o boneco se depara com a raposa João Honesto (Keegan-Michael Key) e o Gato Gideão; acaba se apresentando no teatro de marionetes de Stromboli (Giuseppe Battiston) e vai parar na Ilha dos Prazeres, graças ao Cocheiro (Luke Evans de A Bela e a Fera) e o jovem Espoleto (Lewin Lloyd).
Iconografia
A iconografia cristã desenvolvida por Disney ainda se faz presente, com um pai carpinteiro e uma mulher celestial de vestes azuis, como o manto de Nossa Senhora, que desce à Terra como um Espírito Santo, atendendo às preces de um fiel.
Aliás, isso foi ressaltado na animação original, pela dublagem brasileira, na música Quando se Pede a uma Estrela, com trechos como Quando há fé no coração… Deus é bom, mas que foi alterado na redublagem de 1966. No entanto, essa nova versão também reúne diferenças em relação ao que pode-se chamar de filme original, causando estranhamento.
Por mais que Walt Disney tenha sido criticado por nomes como Tolkien, de O Senhor dos Anéis, por amenizar as histórias literárias recontadas nas telonas, para uma apreciação muito facilmente impressionável, era quase um consenso entre crítica e público que a tradução que ele fazia das obras para imagens coloridas em movimento justificava o feito quando, pelo menos, a sua essência era preservada.
ALERTA DE SPOILERS!
(até o próximo subtítulo.)
Logo na abertura, o Grilo narrador do presente conversa com sua versão em tela do passado, fazendo uma piadinha e sinalizando ao público que o que está por vir é uma versão descontraída e bem moderna da história, seja em linguagem ou mensagens transmitidas.
E as piadinhas fora de tom se acumulam, como numa conversa sobre o boneco poder alçar a mesma fama do ator Chris Pine (que foi toscamente traduzido para Tony Ramos). Os relógios de Gepeto são outro ponto a ser considerado: são easter eggs da filmografia dos estúdios Disney. Em um primeiro instante, é algo divertido. A partir do terceiro relógio, aquilo já te tira do filme e perde a graça.
O Pinóquio de Disney podia ser bem mais inocente e carismático do que o de Collodi, mas ainda era inconsequente e carente de Educação, como o desenvolvido pelo autor.
Enquanto a versão antiga da história faz uma espécie de “ilustração infantil” do que Hobbes teorizou no século XVII, de que “o Homem nasce mau (selvagem) e o Estado o civiliza (através de normas)”, a abordagem de agora se firma no oposto, no que Rousseau defendeu no século XVIII, de que “o Homem nasce bom e a sociedade o corrompe”.
O Pinóquio da animação se ilude pelas promessas de fama e fortuna fáceis e então simplesmente cabula a aula. Já o Pinóquio de 2022 é uma vítima da Educação que não é inclusiva. Ele entra na escola e é enxotado dela, simplesmente por ser um boneco.
Mas ele é autossuficiente, não precisa da ajuda de ninguém para saber tomar decisões. O Grilo passa boa parte do filme preso num pote de vidro jogado numa estrada, enquanto Pinóquio se recusa a conversar com Fabiana (Kyanne Lamaya), a curiosa (mas logo desinteressante) manipuladora das marionetes de Stromboli.
Somente quando ela se passa pela boneca Sabina, aí sim, com alguém com local de fala, de igual para igual, o menino de madeira lhe cede atenção. Quando seu nariz cresce e espera-se uma reaparição da Fada, para reajustar alguns de seus valores morais, ele mesmo sozinho já reflete sobre a situação e profere o que deve ser feito.
Porém, as circunstâncias acabam por levá-lo à Ilha dos Prazeres, lugar onde ele fica horrorizado pelas condutas das crianças ao redor, quebrando coisas, promovendo bullying e se esbaldando em (pasmem) muito refrigerante. E pensar que num passado tão mais retrógrado via-se a outra versão desse menino se embriagando de cerveja e dando umas tragadas nuns charutos (para depois aprender que isso não é saudável).
Agora, em um mundo pós-Tiros em Columbine, não surpreende que Gepeto não empunhe mais uma espingarda. O movimento Me Too também deixou sua marca e as bonecas não mostram mais as calçolas em suas danças. Há até mesmo uma gaivota fêmea falante, Sofia (Lorraine Bracco), para equiparar a divisão de personagens de acordo com os gêneros.
Parece que até a associação protetora dos animais gerou algum impacto, impedindo uma baleia de ser vilanizada. Monstra existe no filme, mas não é uma baleia, é literalmente uma monstra. E claro que as reivindicações do Oscar So White não passariam batidas pela produção, que escalou uma atriz negra para encarnar a Fada Azul, antes pintada como branca loira.
Ela não causaria tanto impacto, se não fosse pela caracterização: as asas de borboleta deram lugar às de algum outro inseto bem peculiar. As madeixas platinadas foram trocadas por uma mera careca. Nada disso é à toa, tudo tem sua motivação. Assim predomina a mensagem moderna de aceitação das pessoas puramente como são, sem concessões.
Isso é reafirmado ao longo do filme, desde sua aparição. Quando Pinóquio ganha vida, ele só repete o que os outros falam. Esse é seu único defeito. A Fada corrige isso e somente isso. A partir do momento em que a criança não reproduz mais discursos alheios, ela se torna perfeita como é e assim que deve ser aceita. A sociedade não precisará mais moldá-lo, ela só tentará corrompê-lo.
A pressa é inimiga da perfeição
Ainda na cena inicial, a Fada esboça uma cantoria. Seu talento é inegável e é uma pena que somente por esse breve momento ele seja apreciável. Aliás, esse é outro problema do filme, um musical que não se assume como tal. Há muitos esboços de música que não engrenam e terminam abruptamente. E as que engrenam não empolgam.
Definitivamente, o compositor Alan Silvestri não estava em seus momentos mais inspirados. As belas paisagens da Toscana também não foram o suficiente para inspirar os enquadramentos de câmera insípidos de Don Burgess. Enquanto isso, os efeitos visuais se excedem sem motivo por um lado e pecam por outro.
Muito desses entraves criativos se devem pela pressa do estúdio em lançar logo o projeto, que teve início em 2015, mas dois anos depois teve o roteirista e o diretor trocados.
É incrível observar o quão capaz são os artistas de estúdios de cinema, quando desenvolvem fenômenos magníficos, que atravessam gerações. E é inacreditável ver o quanto eles se apoiam numa ideia que deu certo, a desgastando ao máximo, produzindo distorções de mais do mesmo, em filmes cada vez piores.
Foi assim nos anos 90, com as tenebrosas sequências de baixo orçamento de clássicos consagrados e estão nessa inércia de novo há mais de doze anos, com esse exercício de nova roupagem de clássicos intocáveis em live action.
As sequências ao menos passavam a sensação de estarem caminhando em um universo confortável, motivo de orgulho: “Olha o personagem X aqui de novo, naquele mundo que você admira”. Já os remakes vêm carregados duma atmosfera de mea culpa, como se tivessem vergonha das animações originais, meio que se desculpando por supostos defeitos de outrora, que não haviam sido notados por ninguém.
Isso é sentido quando alguns aspectos visuais e narrativos são “moralmente aprimorados”. Não existe uma pessoa em toda a face da Terra que prefira honestamente as sequências ou as versões filmadas às animações clássicas.
Desse modo, para valorizar o próprio legado, os estúdios poderiam simplesmente relembrar o público de sua existência, em vez de reconstruírem esses mesmos mundos de tempos em tempos.
Do outro lado, é importante que o público reflita que histórias com início, meio e fim são autossustentáveis e não precisam ser esticadas em desnecessárias sequências intermináveis. Filmes bem-sucedidos são em si a sua razão de ser e do sucesso que desfrutam, mesmo com suas limitações tecnológicas e morais da época em que foram construídos. Tendências de mercado e produtos pasteurizados têm prazo de validade. Legítimas obras de arte, não.
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