Após a estreia de Sandman na sexta-feira, basicamente o mundo geek se divide entre quem assistiu e leu as HQs e quem assistiu, mas não leu. Os provedores de conteúdo de cultura pop lotaram as mídias sociais comentando a criação de Neil Gaiman, demonstrando o impacto que a série Top 10 da Netflix no fim de semana causou… sem falar nos memes.
Terminei esta primeira temporada em um misto de alívio – porque não estragaram – e alegria – porque a adaptação é ao mesmo reverente ao original e integrada às necessidades da mídia audiovisual.
O fã que idolatra a obra, ao mesmo tempo tem que lidar com o que construiu na imaginação – ou no Sonhar – durante anos, e com o fato de saber como as tramas acontecem.
A série reúne dois dos primeiros arcos, Prelúdios e Noturnos, em que somo apresentados a Sandman e seu universo; e Casa de Bonecas, basicamente uma caça a sonhos e pesadelos que deixaram o Sonhar durante a ausência de seu soberano, e a descoberta de uma humana que pode destruir tanto o mundo desperto quando o dos sonhos.
Tom Sturridge (o Alan Ginsnberg da adaptação cinematográfica de On the Road) e seus colegas de elenco vão se impondo como as versões live action dos nossos personagens queridos – Morpheus, Morte (Kirby Horwell-Baptiste, de Killing Eve), Lucifer (Gwendoline Christie, a ótima Brienne de Tarth de Game of Thrones), Rose (a estreante Vanesu Samuniay) – ou nem tanto – John Dee (David Thewlis, também conhecido como professor Lupin, da saga Harry Potter), Corintio (Boyd Holbrock, um dos tiras americanos do primeiro Narcos), Delírio (o ator não-binário Mason Alexander Park) – ao longo dos episódios. E mesmo com os spoilers dentro de nós, a série surpreendeu. Se não quiser saber mais detalhes, é melhor não prosseguir.
ALERTA DE SPOILER!
O primeiro episódio é justamente o mais problemático, especialmente por uma mudança na história, que é a morte de Roderick Burgess (Charles Dance, o Tyrion Lannister) dentro da cela de Morpheus, criando uma situação contraditória, já que, como veremos adiante, a Morte acolhe a todos no derradeiro suspiro. Nas HQs, ele morre de velhice, amargo e frustrado. Mas é necessário colocar um pouco de ação numa narrativa que é, originalmente, um jogo de paciência entre o Eterno e seus captores. E aí, eles capricham em emular muitas ilustrações originais.
A introdução do Corintio já no começo da série é uma opção interessante, apresentando um antagonista com uma motivação de cara, o que lá na frente vai solucionar o que eram coincidências demasiadas da narrativa.
Outra diferença é a participação de uma Johanna Constantine (Jenna Coleman) ao invés do mago do trench coat surrado, por causa de um entrevero contratual com a DC/Warner, proprietária do personagem. O roteiro fez questão de incluir o caso Newcastle, citado a todo instante por Constantine em Hellblazer, mas achei que ficou bem menos marcante. Em todo caso, quem melhor para ser a versão feminina dele que uma ex-sidekick do Doctor Who?
Nem todas as diferenças foram em função de ajustar a narrativa ou questões do Multiverso DC (que sequer existe). A mudança de gênero e etnia do/a bibliotecário/a Lucienne (Vivienne Acheampong, de Convenção das Bruxas) foi em parte por inclusão, mas também fez crescer sua participação na trama, de forma coerente e valorizando a história.
Lúcifer Morningstar também teve alterada sua participação em Prelúdios e Noturnos, que inclui os quatro primeiros episódios, não apenas por ser uma atriz sua intérprete (e discutir o sexo dos anjos não é sinônimo de debate estéril?), mas por ser o Rei dos Infernos o duelista do Rei dos Sonhos, o que tornou a disputa mais relevante, justificando ainda mais os acontecimentos que devemos ver numa segunda temporada com o arco Estação das Brumas. Detalhe: a aparição de Mazekeen (Cassie Claire) é uma piscadela para os fãs do Lucifer de Tom Ellis, porque nos quadrinhos ela mal aparece.
24/07, que fecha o primeiro arco, nas HQs é uma das histórias mais perturbadoras já escritas, e se não é tão gore quanto o original, mantém a tensão e emoção, com um trabalho sensacional de David Thwelis como John Dee, sendo um triunfo da adaptação.
Entre Prelúdios e Noturnos e Casa de Bonecas temos o já clássico reencontro de Morpheus com sua irmã mais velha, a Morte, o episódio O Som de Suas Asas, que está perfeito na série. Eles emendam com Homens de Boa Fortuna, em que conhecemos Hob Gading (Ferdinand Kingsley, de Mank), e ficou melhor que o original.
A crítica Isabela Boscov achou que a série cai no segmentos finais, que originalmente é muito mais intrincada e inclui a mitologia pregressa do Sandman na DC. Achei engenhosa a forma como ligaram a história de Lyta (a libanesa Razane Jammal, da série egípcia Paranormal, que está na Netflix) com a de Rose, e a substituição de Brute e Glob por Gault (Ann Ogbomo, uma das amazonas de Mulher-Maravilha) acrescenta mais do que tira da história.
Quando Barbie (Lily Travers, de O Último Vice-Rei) aparece com Martin Tenbones é lindo, evocando o arco Um Jogo de Você, que, para mim, é o melhor de todo Sandman. E não dá para imaginar outro ator que não o fabuloso Stephen Fry para encarnar Gilbert/Fidlers Green.
Em um momento em que produções de franquias consagradas vem decepcionando – como a série Obi-Wan Kenobi, de Star Wars; o filme Thor: Amor e Trovão, da Marvel; e continuações de Umbrella Academy e Killing Eve, que já foram ótimas e agora passaram despercebidas – é um prazer ver o acerto. Sandman já deixa o público na expectativa por uma segunda temporada.
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