As mortes de Paulo José e Tarcísio Meira na semana passada causaram comoção nacional, mesmo estando ambos afastados do cenário artístico já há algum tempo. Os dois foram ícones do audiovisual no Brasil, e aqui dou uma visão pessoal da trajetória dos dois, como consumidor e crítico de cinema.
Paulo José teve uma carreira mais cinematográfica, embora tenha feito trabalhos marcantes na televisão; enquanto Tarcisão era um homem da TV, mesmo com participações importantes na tela grande.
Embora fosse dois anos mais jovem, quem se projetou primeiro foi Paulo José, com O Padre e a Moça (Globoplay), de Joaquim Pedro de Andrade, em pleno ciclo do Cinema Novo, em 1966. Livremente inspirado num poema de Carlos Drummond de Andrade, já vemos aqui um ator que se notabiliza pelo olhar alumbrado, que o caracterizaria em toda carreira. No mesmo ano, ele estrela o sucesso Todas as Mulheres do Mundo (Globoplay) de Domingos de Oliveira), ao lado de Leila Diniz, que viria a inspirar a minissérie global homônima de 2020. Dois anos depois, repetiria a parceria com diretor e atriz em Edu, Coração de Ouro; e estrelaria a versão cinematográfica do conto de Fernando Sabino, O Homem Nu, dirigido por Roberto Santos, de novo com Leila Diniz.
Em 1969, ele voltaria a trabalhar com Joaquim Pedro de Andrade em Macunaíma (Globoplay), adaptação do livro de Mario de Andrade, dividindo o papel-título com Grande Otelo e fazendo par com sua então esposa, Dina Sfat. É uma obra-prima antropofágica, que, inadvertidamente ou não, coincidiu com a explosão do Tropicalismo.
Paulo José já havia estreado na TV em Véu de Noiva (1969), que lançou o casal Regina Duarte e Cláudio Marzo, mas foi em O Primeiro Amor (1972) que ele viveu seu auge de popularidade. A novela de Walter Negrão já era sui generis por substituir o ator principal Sérgio Cardosos, morto durante as gravações, por outro de porte similar na dramaturgia, Leonardo Vilar (em sequência memorável, em que o primeiro entrava numa porta e o segundo sai pela mesma, explicando os motivos da troca), mas o núcleo humorístico formado por Paulo, o Shazam, e Flávio Migliaccio, o Xerife, roubou a cena; fazendo com que, pela primeira vez, a Globo produzisse um seriado com personagens saídos de um folhetim diário, Shazam, Xerife & Cia (se não me engano, isso só viria a se repetir com o Mário Fofoca de Luis Gustavo, muitos anos depois).
Paralelamente à TV, sua carreira cinematográfica prossegue, protagonizando sucessos como Cassy Jones, o Magnífico Sedutor (1972), de Luis Sérgio Person, ao lado da estrela do momento, Sandra Bréa; e O Rei da Noite (Globoplay), estreia de Hector Babenco em longa de ficção, uma versão carioca de Orfeu e Eurídice, ao lado de Marilia Pera, em 1975.
A partir de 1992, ele é diagnosticado com Mal de Parkinson, mas ainda assim, continua trabalhando. Ele é o Policarpo Quaresma, Herói do Brasil, na versão do romance de Lima Barreto por Paulo Thiago, em 1997; faz a versão velha de Benjamin (Globoplay), na adaptação do romance de Chico Buarque feita por Monique Gardenberg em 2003, tendo a estreante Cleo Pires como imagem da mulher amada; participou de dois filmes do conterrâneo Jorge Furtado, em O Homem que Copiava (Globoplay), de 2003; e Saneamento Básico: O Filme (Globoplay) de 2007; é o Quincas Berro d’Água, na adaptação de Sérgio Machado para o livro de Jorge Amado, em 2010; e, no ano seguinte fez O Palhaço (Telecine), ao lado de e dirigido por Selton Mello, que podemos considerar sua despedida de cena.
O maior galã
Tarcísio Meira começa sua carreira no cinema, com o produtor e comediante Amácio Mazzaroppi, em 1963, com Casinha Pequenina. Rapidamente, migra para a televisão, onde engata um trabalho atrás do outro. Na maioria das vezes ao lado da mulher, Gloria Menezes.
Em 1970, estrela Quelé do Pajeú, do premiado Anselmo Duarte, mas que foi um fracasso e crítica. Quando nosso escritor laureado, Antônio da Cunha Penna, certa vez abordou o diretor de Pagador de Promessas e disse ter gostado de Quelé, o cineasta retrucou: só você e eu gostamos. Não deve ser verdade, já que quando Anselmo faleceu, em 2009, a maior celebridade que compareceu ao seu velório em Salto foi justamente Tarcísio Meira.
Ele se consagra como grande galã da televisão brasileira a partir de Irmãos Coragem (1970), uma saga de Janet Clair que eletrizou o país. Na onda de sua consagração como arquétipo de herói televisivo, ele é escalado para ser o Dom Pedro I na superprodução ufanista, Independência ou Morte, dirigido por Carlos Coimbra para celebrar o Sesquicentenário do Grito do Ipiranga, tendo Glória como a Marquesa de Santos, Dionísio de Azevedo como José Bonifácio e Manoel da Nóbrega, da Praça da Alegria, como Dom João VI. Um cast fantástico, em que elenco e direção de arte se esforçavam em reproduzir as pinturas que povoavam o imaginário do brasileiro a respeito do Primeiro Império. Em contraste, em 1979, Glauber Rocha o chama para seu Idade de Terra, e ele topa.
1981 é o ano da quebra dos paradigmas para Tarcísio. Ele faz uma participação hilária em Eu te amo, de Arnaldo Jabor, satirizando sua própria imagem de galã; e Beijo no Asfalto (Globoplay), adaptação de Bruno Barreto da peça de Nelson Rodrigues, cuja cena final foi um choque para as plateias da época, ainda que a versão de 2018 seja, no geral, superior.
No ano seguinte, Walter Hugo Khoury empresta a figura arquetípica do ator em sua obra mais polêmica, Amor, Estranho Amor, impedida de ser revista por anos, graças a uma ação impetrada por Xuxa Meneghel, que achava que sua participação como prostituta adolescente prejudicaria sua imagem. Bobagem, é o melhor filme que ela fez, no qual Tarcísio encarna um político vagamente inspirado no político paulista Armando Salles Oliveira. O ator trabalharia novamente com Khoury em outro sucesso, Eu (1987), num daqueles papéis alter ego que caracterizaria a fase final do cineasta.
Possivelmente, com as possibilidades abertas pelos trabalhos no cinema, ele encara um dos maiores desafios na TV, Guerra dos Sexos (1983-84), em que não apenas implodia sua imagem de galã, como ainda tinha que contracenar com os monstros sagrados dos palcos, Fernanda Montenegro e Paulo Autran.
Em 1985, ele encarna dos personagens emblemáticos da literatura brasileira na Globo, o Capitão Rodrigo Camará em O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo; e o traiçoeiro Hermógenes de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Se no primeiro Tarcísio era a escolha óbvia para quem leu Um Certo Capitão Rodrigo; no segundo dependeu de uma maquiagem pesada e uma grande atuação para viver o antagonista de Riobaldo e Diadorim, vividos por um excelente Tony Ramos e uma surpreendente Bruna Lombardi, sob direção inspirada de Walter Avancini,
Nos anos seguintes, os papéis de sucesso na televisão prosseguiram, todos exaustivamente citados nos obituários que se seguiram à sua morte, mas nada comparável aos desafios que encarou entre o início dos anos 70 e meados da década seguinte, em que consolidou uma atuação segura com seu enorme carisma. Se último trabalho foi Orgulho e Paixão (Globoplay) em 2018, como Lord Williamson.
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