Já se foi uma semana da 44ª Mostra de São Paulo, agora ela se encaminha para seus últimos dias, no entanto ainda há tempo para conferir muita coisa, a exemplo de novos títulos que foram disponibilizados no último dia 29/10, como Não Há Mal Algum, City Hall e O Despertar de Fann Lye – alguns dos quais, inclusive, iremos conferir.
Nestes primeiros 7 dias, o colaborador Angelo Cordeiro assistiu a 50 filmes do cardápio da Mostra, entre cabines de imprensa e compras via cartão, e fez uma seleção de 20 filmes para compartilhar aqui conosco. Confiram as dicas abaixo:
Welcome to Chechênia – ★★★★
Welcome to Chechnya, David France, 2020
Uma das principais características do cinema é sua capacidade de dar voz às minorias. Num documentário, este “local de fala” pode ganhar ainda mais potência e relevância quando é dada a possibilidade destas pessoas contarem sobre seus próprios dramas e mostrá-los para o mundo.
David France registra os dias difíceis de um grupo de ativistas da causa LGBT russa em algumas manobras para ajudar e socorrer pessoas que correm risco de vida na Chechênia somente por serem homossexuais e lhes conseguir asilo em outros países.
Com uma contextualização exemplar, compreendemos de onde vem o ódio mortal pelos gays (na voz do líder da Chechnya eles são sub-humanos e suja a raça) e, infelizmente, assistimos a alguns vídeos de tortura e agressões (o documentário tem cenas fortes e explícitas, por isso, é recomendado para maiores de 18 anos).
Como num filme de sobrevivência, existem alguns momentos de tensão, a exemplo do resgate de uma jovem que corre o risco de ser interceptada ao tentar deixar o país, e também quando Maxim Lapunov decide ser a primeira vítima a expor seu rosto – como um herói que revela sua identidade secreta – para contar toda a crueldade que sofrera quando preso para entregar outros gays como ele.
E é exatamente aí, quando conhecemos a fundo quem são as pessoas que sofrem com tais ameaças diárias (com uma ótima aplicação de deepfake para proteger a identidade das vítimas), que o documentário humaniza e nos emociona.
Um registro doloroso e essencial para tempos nos quais governos cada vez mais extremistas vêm ocupando o poder de nações grandiosas e de dimensões continentais, como o Brasil. É revoltante ver tanta atrocidade em pleno 2020 ao mesmo tempo que é importante que este documentário se espalhe.
Mosquito – ★★★★
Mosquito, João Nuno Pinto, 2020
É graças a filmes como Mosquito que a experiência de se ver um filme no cinema nunca será superada. Assisti-lo em casa deixa evidente como uma sala escura e silenciosa faz falta. Mosquito é um desbunde cinematográfico, principalmente em sua segunda metade.
Para contar essa história, o diretor João Nuno Pinto se baseou na vida do próprio avô. A premissa simples do jovem soldado Zacarias que se perde do seu pelotão em pleno Moçambique durante a Primeira Guerra toma rumos nada simplórios quando ele, perdido, adentra o país desconhecido e tem contato com o povo macua e com seu próprio espírito colonialista.
Orgulhoso por se alistar ao exército para servir a pátria, Zacarias pode ser comparado ao protagonista de Vá e Veja, um dos maiores filmes de guerra da história. O que impressiona é que Mosquito ao mesmo tempo que vai se tornando um estudo de personagem, critica o orgulho português de ter sido colônia de tantos países africanos, inverte os papéis e é cinema com C maiúsculo. Pena que não deu pra ver na telona, ainda assim, mesmo em casa, é uma experiência eletrizante e hipnotizante.
Apenas Mortais – ★★★★
Being Mortal, Liu Ze, 2020
O que mais impressiona neste longa de Liu Ze, é o fato deste ser o seu primeiro trabalho e mesmo tendo em mãos um tema tão delicado quanto a doença de Alzheimer, ele não se rende ao maniqueísmo e trata tudo com respeito à doença e, principalmente, aos seus personagens, mostrando como cada um deles são afetados conforme a doença do patriarca vai se agravando.
Liu Ze mostra que o Alzheimer é uma doença que acomete não só o diagnosticado, mas também aqueles que o cercam. Para o pai é desumana e difícil a batalha praticamente perdida para uma doença degenerativa. À esposa, fica a tarefa nada fácil de cuidar do parceiro até seus últimos dias. E às filhas, cada uma ao seu modo, a dedicação ao pai.
Se para uma delas dar dinheiro para ajudar nos cuidados médicos é o suficiente, para Xian Tian sua presença 24 horas por dia é essencial. Com isso, ela sai de um relacionamento com um homem casado e, por acaso, se envolve com um rapaz solteiro que se mostra presente, dedicado e compreensível.
Se não há nada de novo em Apenas Mortais, é justamente na simplicidade com que Liu Ze nos revela o dia a dia daquela família que reside a força do filme e daqueles personagens. Sem julgamentos e sem dramatizações exageradas, a história tem lá seus momentos de Amour, de Michael Haneke, afinal, o Alzheimer não é uma doença das mais agradáveis de lidar.
Acaba que Apenas Mortais é como subir ao ringue para uma luta que sabemos que iremos perder, ainda assim, estar ao lado dos entes queridos faz daqueles momentos não menos dolorosos, mas reveladores de quem está ao nosso lado.
A Morte do Cinema e do Meu Pai Também – ★★★★
Moto Shel Hakolnoa Veshel Aba Sheli Gam, Dani Rosenberg, 2020
Fazer cinema no Oriente Médio não deve ser tarefa fácil. Parece haver ali todo um esforço dos governos para que o setor cultural daqueles países se feche e não ganhe o mundo. E é justamente desses lugares que surgem pérolas como A Morte do Cinema e do Meu Pai Também, de Dani Rosenberg.
Amos Gitai, um dos cineastas israelenses mais conhecidos, já sofreu com a carência de recursos em seu país, tendo que se mudar para a França para conseguir produzir. O mesmo já aconteceu com o iraniano Abbas Kiarostami, que trabalhou por tantos anos na França.
Pior para alguns, como o também iraniano Jafar Panahi, proibido pelo governo de seu país até mesmo de produzir filmes. Porém, como diz Gitai: “Cinema é fazer oposição, instalar a contradição e o questionamento.” E Panahi realizou 3 Faces à revelia de seu país e, este ano, chega à Mostra de São Paulo com o excelente curta Hidden, parte do projeto “Masters in Short”.
No entanto, este prefácio serve apenas para mostrar um lado das dificuldades enfrentadas no Oriente Médio. Dizem que nesses momentos as melhores ideias surgem e, bem da verdade, A Morte do Cinema e do Meu Pai Também é um primor por remeter diretamente a docudramas de Kiarostami e Panahi.
Rosenberg mostra outra dificuldade em se fazer cinema: aquela que está dentro de casa. A figura reticente e doente do pai serve até mesmo como uma metáfora para a situação do cinema naqueles países. Yoel não quer participar do filme do filho Assaf. Ele acha as ideias do filho ruins. Questiona que ele valoriza o filme acima da família e acima do filho que está prestes a nascer.
No entanto, Assaf luta para que o pai (muito mal de saúde) faça parte de seu filme. Se o pai morrer, o cinema vai junto. Se seu filme não sair, Assaf (um alter ego do diretor?) ficará sem aquele simbólico e artístico último adeus ao pai.
Ficção e documental se misturam e se confundem como nos melhores filmes de Kiarostami. Questionamos o que é realidade e o que é atuado sem que a dúvida nos incomode, ela nos estimula e nos envolve com aqueles personagens. Arquivos pessoais de Rosenberg costuram a trama de Assaf e Yoel, vamos percebendo o que ele queria fazer com o pai em vida e o que ele faz é uma das mais belas mensagens de amor ao cinema, à família e ao pai.
Graças a este sentimento de dúvida somos contemplados com uma das mais belas e sensíveis cenas do ano: a da esposa Zohar recriando uma ida ao médico na qual a ausência do marido lhe tira lágrimas. Ali ela deixa claro o que importa para ela e o que importa para Assaf.
Na realidade, ambos lhe importam, sem um o outro não existiria para ele, é uma dicotomia que o artista não consegue equilibrar. No cinema ele encontra seu refúgio. No pai ele encontra sua inspiração. O que fica é arte. É a saudade do pai. É eterno e é etéreo.
Sweat, Magnus von Horn, 2020
Como será a vida de um influencer? Aquela persona que nos é apresentada por meio de stories, fotos e vídeos representa quanto da personalidade real de uma pessoa? Se nós mesmos nos enchemos de filtros e efeitos para uma simples foto no feed, imagine o quanto uma pessoa que tem milhões de seguidores não mascara?
Suor mostra o outro lado da vida de uma dessas influencers digitais. O suor do título pode ter dois sentidos, o primeiro deles porque, de fato, Sylwia sua com seus exercícios e rotina fitness, o segundo porque aqueles que a acompanham não conhecem os perrengues que ela enfrenta. É aquela frase popular: quem vê sucesso, não vê corre.
O diretor Magnus von Horn nos apresenta então a este lado mais íntimo de Sylwia. Cheia de dilemas, ela encara boa parte deles com bastante personalidade, expulsa um tarado que a persegue, convida um colega de trabalho para sua casa, e quando desabafa em um vídeo em sua rede social por não se sentir amada e ser sozinha, o vídeo viraliza e pega mal perante seu staff. Sylwia é julgada por ser verdadeira e honesta com seus fãs e por revelar uma faceta que ela supostamente deveria camuflar.
Propondo este estudo de personagem (e não um ataque aos malefícios das redes sociais como certo documentário óbvio lançado há algumas semanas propôs), von Horn nos aproxima de Sylwia desde o início com uma câmera que a acompanha a todo instante, somos praticamente sua única companhia e as únicas testemunhas de como ela realmente é sozinha – até mesmo em um almoço em família Sylwia é apenas a garota fitness. Ao final o que fica é: qual o problema em seu desabafo? Se ela sua, também chora.
Djin Sganzerla, 2020
Filha do cineasta Rogério Sganzerla e da atriz e diretora Helena Ignez, Djin Sganzerla sempre esteve bem próxima do cinema marginal, e nesta estreia como diretora ela mostra que tem cinema em seu DNA.
De uma sofisticação que de marginal não tem nada, Mulher Oceano é um mergulho na alma de duas personagens: Ana e Hannah, ambas interpretadas por Djin.
A trama se divide entre as praias do Rio de Janeiro e as ruas movimentadas de Tóquio. A escritora Hannah está em crise no casamento e mora no Japão há certo tempo. Ana gosta de nadar no tempo livre fora do escritório em que trabalha.
A água é o elemento que une e separa aquelas duas mulheres que buscam se resolver e que se confundem. Cada uma ao seu estilo, elas se apegam a coisas diferentes para se conhecer e para seguir em frente.
A Hannah de Tóquio parece o elo mais forte entre as duas. Seus hábitos são mais distantes da nossa cultura (obviamente) e a fotografia com planos abertos de Tóquio ajuda a potencializar esta solidão na cidade onde todos são mais introspectivos.
A Ana do Rio tem relações habituais, seja com o chefe, com o pai ou com seu treinador de natação, inclusive, seu núcleo é onde Djin demonstra ter menos habilidade para sair do esquemático, o dilema de Ana parece mais fraco, ou menos importante, ela mesma parece uma personagem forte por fora mas fraca por dentro e seu dilema fica apenas na superfície.
Ao final, fica a impressão de que Hannah e Ana se completam, ainda que paire a dúvida se elas são a mesma pessoa, distintas ou se uma é fruto da mente da outra. Djin Sganzerla talvez insira aí a questão do marginal, a Ana do Rio é aquela que fica mais à margem e a Hannah é aquela que mergulha de cabeça. Uma bela estreia.
Ilya Khrzhanovsky, Jekaterina Oertel, 2020
Talvez a ousadia do projeto DAU não seja contemplada em toda sua amplitude neste DAU. Natasha, no entanto, após a sua exibição, uma leitura auxiliar nos ajuda a compreender aonde a dupla de diretores Jekaterina Oertel e Ilya Khrzhanovsky quis chegar. Se irá lhe agradar não sei, mas a mim, como reconstituição histórica e um cinema quase experimental e performático é bem interessante.
Realmente parece que estamos na União Soviética da década de 50 dentro daquele instituto secreto de pesquisa onde pessoas são expostas a torturas e a testes dos quais não sabemos para que servem.
A fotografia de Jürgen Jürges, de Funny Games e Christiane F. (filmes tão difíceis e duros quanto este), contempla os ambientes com tons neutros e frios, o que potencializa a sensação de angústia a partir dos rumos que a história vem tomando. Há uma sensação inerente de tensão e medo. Pela época, pelo lugar, pelos costumes e pelos homens.
Uma cena de sexo surge com uma vigorosa entrega dos atores, mostrando que o projeto conta com ousadia não só da parte dos diretores, mas também daquelas pessoas que doam seus corpos em prol da arte.
A questão que fica para alguns é: até que limite isso deveria ir? Seria DAU. Natasha uma denúncia àqueles tempos totalitários ou um filme que perde o controle apenas para chocar?
Bem da verdade, esta parte do projeto poderia se tornar um exploitation dos mais intoleráveis. Não chega lá. Vejo DAU. Natasha como algo sério que se propõe a refazer uma época dura e amarga.
Há sim cenas incômodas, algumas de violência explícita, outras mais sugestivas, mas vejo a arte pulsando ali. Cabe a você decidir se quer encarar ou não.
Uma Máquina para Habitar – ★★★
A Machine to Live In, Yoni Goldstein e Meredith Zielke, 2020
Outro dia estava comentando com alguns amigos sobre a linguagem documental. Muitos documentários ainda se apegam a uma linguagem acadêmica que facilita um assunto como se estivéssemos lendo sobre aquele mesmo tema em qualquer livro ou página da internet, não há autoria sobre o texto.
Alguns cineastas (ou documentaristas) não fazem uso da linguagem cinematográfica a seu favor, limitando-se a contar uma história, falar sobre algo ou alguém sem inventividade. Isso não acontece em Uma Máquina para Habitar.
Em seu documentário, a dupla de diretores Yoni Goldstein e Meredith Zielke fala sobre Brasília de uma forma sem igual. Estão ali os comentários óbvios sobre a arquitetura da cidade, suas formas, seus poderes e seu povo, no entanto, como fica evidente no pôster, o que mais interessa a Goldstein e Zielke é o que é ultraterreno em Brasília.
Como estrangeiros que se encantam pelo diferente, Goldstein e Zielke buscam compreender as forças que agem sobre Brasília – e sob também, como na cena em que um funcionário do plenário vai ao subsolo ler alguns discursos que por lá ficaram.
Embarcar neste documentário é como fazer uma tour virtual e espiritual por Brasília sem que o estilo experimental roube a importância do documental. Conhecemos os ideais das pessoas e da própria cidade, somos levados aos marcos históricos, mas sempre com esse olhar para o ultraterreno, para o interior, para o que vem e o que sai de Brasília.
A narração com vozes computadorizadas dão essa ideia de que Brasília é como uma nave espacial que pousou no planalto central e por ali ficou, recebendo energias de um plano astral que rege todo o universo e a própria cidade. Se isso é verdade, não sei, mas pelo andar da carruagem as forças que andam agindo por lá não são muito boas.
Obrigatório pra quem é de Brasília, do Brasil, fã de cinema, de arte, de arquitetura e de documentários.
Mate-o e Deixe Esta Cidade – ★★★
Zabij To I Wyjedz Z Tego Miasta, Mariusz Wilczyński, 2019
Dizem que quando estamos prestes a morrer, um filme de nossas vidas passa em nossa mente. Ora, como um filme de tudo o que vivemos poderia transcorrer diante de nós em milésimos de segundos? – pensa o questionador mais ávido. Esse questionador até tem razão, embora, nesta animação, Mariusz Wilczyński consiga nos exemplificar como seria o filme de sua vida.
Não que o diretor faça isso em milésimos de segundos, mas, em pouco mais de 80 minutos, Wilczyński traz memórias, personagens, lugares, sons, refaz momentos e creio que até gostaria de exalar aromas e cheiros, caso o cinema assim permitisse. É como se Wilczyński fizesse o seu próprio “Quero Ser John Malkovich”. O diretor abre a porta de sua mente e nos convida a adentrá-la. Passamos de cômodo em cômodo conhecendo e revivendo passagens marcantes da vida azul do artista.
O fundo de papel amassado em algumas destas passagens exibe o poder do audiovisual, e numa animação tão livre de amarras, onde imagens abstratas e metáforas visuais parecem ter saído do sonho mais estranho, tudo é tão anacrônico que não há nada que nos faça questionar o que é certo ou errado, o que faz sentido ou não.
Acaba que Mate-o e Deixe Esta Cidade é mesmo uma viagem sem roteiro à mente de Wilczyński, daquelas mais longas e difíceis, afinal, ele próprio levou em torno de 15 anos para conseguir finalizar o projeto. E nem vejo muito sentido em querer compreender tudo o que está ali, fica óbvio que muito do que se passa só faz sentido na mente do próprio Wilczyński.
Naqueles rascunhos das mais diferentes épocas, seja da infância com os pais ou da velhice com a mãe moribunda, o filme ganha força justamente por conseguir transmitir passagens da vida de uma pessoa de uma forma que só o cinema seria capaz.
Chico Ventana Também Queria Ter um Submarino – ★★★
Chico Ventana También Quisera Tener un Submarino, Alex Piperno, 2020
O mais curioso de Chico Ventana é que esta ser uma coprodução entre Uruguai, Argentina, Brasil, Holanda e Filipinas reflete de alguma forma na premissa. Seria esta cooperação entre países uma ideia de que estamos todos conectados mesmo em lugares e classes diferentes?
No filme, somos apresentados a um grupo de fazendeiros das Filipinas que encontram uma cabana misteriosa abandonada em um vale. Logo eles atribuem a ela um poder sobrenatural, fazendo oferendas e sacrifícios de animais para que possam compreendê-la de alguma forma.
Posteriormente, entram na história uma mulher que habita um apartamento em Montevidéu e um jovem que trabalha a bordo de um cruzeiro de luxo. Ele, o tal Chico Ventana, descobre uma porta que dá no apartamento da solitária moradora e, como um fantasma, lhe faz visitas. Somente nós compactuamos daquele segredo com ele.
Entre muitas idas e vindas, pessoas solitárias que se permitem compartilham momentos e lembranças. Temos poucas informações de quem elas foram e de quem elas são. Vamos também nos abrindo para suas andanças a partir daqueles encontros que fazem com que um mundo novo se abra para elas. Tudo é muito sóbrio e sereno, não há nada muito acima do tom.
Tal qual em seu curta “La Inviolabilidad del Domicilio se Basa en el Hombre que Aparece Empuñando un Hacha” (pois é, o filme é um curta mas o título é longo), o diretor Alex Piperno nos induz a decifrar o que estamos testemunhando.
Ao final, o que fica bem claro é que a curiosidade serve ao bem ou ao mal, e que o medo do desconhecido (ainda vivo naquela região das Filipinas) pode ser trágico. Quantas portas não deixamos de abrir e adentrar com medo do que possa estar do outro lado?
Kubrick by Kubrick, Gregory Monro, 2020
O formato do documentário de Grégory Monro é bastante engessado. Ao invés das tradicionais cabeças flutuantes ou de uma montagem mais dinâmica, o que vemos são cenas de filmes de Kubrick enquanto as entrevistas em áudio do genial diretor para o crítico Michel Ciment são tocadas em off.
A experiência não é nada cinematográfica, embora cenas dos filmes de Kubrick estejam ali. A estrutura me lembrou o que é feito em Listen to me Marlon, documentário de Stevan Riley sobre a trajetória de um dos grandes atores da história do cinema – se não o maior – Marlon Brando.
Ciment sabia que estava diante de um gênio bastante genioso e fez um registro único, afinal, Kubrick odiava entrevistas pelo simples fato de em muitas delas os entrevistadores parecerem querer tirar dele uma resposta genial para as intenções de seus filmes. Talvez, por isso, o documentário tenha essa estirpe de chapa branca, ora, imagine qualquer jornalista ou crítico, por mais atrevido que fosse, tendo a oportunidade de entrevistar alguém como Kubrick, é preciso cercá-lo de forma sutil e é o que Ciment faz aqui. Infelizmente, nem todo mundo é Mike Wallace.
Por isso, Kubrick passa de maneira breve e sem muitas explicações por sua filmografia que nem é tão extensa, mas bastante complexa, ele não se aprofunda como gostaríamos, ainda assim, o registro é interessante pela raridade do acontecimento.
Alguns filmes, como Lolita, ganham pouco tempo de atenção, já outros, como Glória Feita de Sangue, Barry Lyndon e Laranja Mecânica, ganham comentários que nos revelam mais ou menos como a mente de Kubrick funcionava e elucidam sua ideia de cinema.
Comentários de colegas de set e atores também contribuem para tal, mas fica impossível mergulhar naquela mente por completo, Kubrick sabia o que estava fazendo. É mais ou menos como Malcolm McDowell resume Kubrick, ele chegava no set sem nada pronto e se adequava às situações. Nesta entrevista, Kubrick fala o que quer e esconde o que não quer expor. Dessa forma, mantém seu legado de mistério e corrobora sua genialidade.
Al-Shafaq – Quando o Céu Se Divide – ★★★
Al-Shafaq – When Heaven Divides, Esen Isik, 2019
Quando assisti a O Jovem Ahmed, em 2019, também na Mostra de São Paulo, ouvi e li comentários de colegas de que os irmãos Dardenne se apropriaram do lugar de fala das pessoas que são adeptas do Islamismo e que vivem em seu dia a dia as ameaças do Estado Islâmico.
Neste Al-Shafaq – Quando o Céu Se Divide, a diretora turca Esen Işık conta a história de uma família que se muda da Turquia para a Suíça e que desmorona quando o filho mais novo decide servir à Guerra Santa na Síria. Se no projeto há esse “local de fala” em Işık, na aplicação da linguagem cinematográfica ela parece muito mais preocupada em articular uma engenhosa estrutura em espiral para edificar uma premissa bem simples.
Se por um lado esse exercício estilístico foge aos padrões tradicionais de uma linha temporal progressiva, por outro lado, não há nada ali que necessitasse tantas articulações, já que a própria abordagem de Işık evita surpresas ou reviravoltas.
Desde a primeira cena, fica evidente que Işık não quer somente nos chocar. Ela inicia seu filme com uma cena bastante dramática e, embora não saibamos quem são aqueles personagens, a empatia por eles é sintomática. Aos poucos, Işık vai dando nós na estrutura do filme para nos apresentar a pessoas e tempos distintos, isso causa até certa confusão no primeiro ato, mas conforme ela vai desatando alguns destes nós, a ideia fica mais clara e o filme vai crescendo narrativamente.
Işık faz bom uso da premissa bastante simples para propor um filme-denúncia sobre a realidade de muitas famílias que nos últimos anos perderam seus jovens para a Guerra Santa. Ela repete o que pode ser visto em Adeus à Noite, de André Téchiné e Meu Querido Filho, de Mohamed Ben Attia, e talvez invente mais do que precisava, mas ainda assim, Al-Shafaq é um filme que tem sua força dramática ao expor um dilema que ainda aflige muitas famílias do Oriente Médio.
Nilanadukkam, Balaji Vembu Chelli, 2020
Em 1992, o iraniano Abbas Kiarostami dirigiu a segunda parte da trilogia Koker. No filme intitulado E a Vida Continua, um diretor e seu filho viajam à região de Koker, atingida por um terremoto, local no qual o cineasta havia feito um filme há alguns anos e para onde volta em busca daqueles que atuaram em seu longa.
A dois países dali, na Índia, é possível identificar algumas similaridades em Tremor, filme do diretor estreante Balaji Vembu Chelli. O protagonista é um jornalista que viaja à região de Kookal para realizar uma reportagem sobre um terremoto que, aparentemente, arruinou todo um vilarejo.
Em sua jornada, o jornalista parece viver seus dias de Alice ao seguir por estradas sinuosas e adentrar em uma vila cada vez mais coberta por uma densa neblina. As poucas pessoas que lhe aparecem são estranhas, algumas lhe dão informações desconexas, outras lhe pregam peças e outras lhe ameaçam.
A sensação de estranheza vai tomando conta da narrativa e, diante de tantas voltas, a impressão de que um curta estruturaria melhor a jornada do jornalista começa a ficar evidente. Chelli se interessa tanto pelos sons da natureza quanto pela trilha sonora sempre presente, o silêncio do protagonista diante de tanto estranhamento meio que evoca uma sensação de não pertencimento.
Por alguns momentos, há uma tentativa intrigante de seguir pelo caminho do realismo fantástico e essa, talvez, seja melhor recebida pelo público indiano. É um filme bastante regional, de idas e vindas, desencontros, desinformações e voltas em círculo que parece não chegar a lugar algum. O final é abrupto e, se não corresponde às expectativas criadas durante a jornada, pelo menos, o sorriso do jornalista deixa a impressão de que para ele valeu de algo.
Mamá, Mamá, Mamá, Sol Berruezo Pichon-Rivière, 2020
Mamãe, Mamãe, Mamãe, primeiro trabalho de Sol Berruezo Pichon-Riviére mescla o estilo de Lucrécia Martel de O Pântano com a premissa do argentino Família Submersa (filme que assisti na Mostra de 2018) e pode ser definido como um coming of age feminino.
A jovem Cleo perde a irmã, afogada na piscina, e as primas Leoncia, Manuela e Nerina vão passar uma temporada na casa, onde a mãe de Cleo vive trancada no quarto, afundada em um luto depressivo. O que se vê então, são sopros de vida após uma tragédia que é capaz de arruinar com qualquer um.
Nesse universo bastante particular e idílico, as meninas passam por alguns dos muitos dilemas que as mulheres encaram na infância, a primeira menstruação, o primeiro beijo, o corpo em desenvolvimento, as brincadeiras, as histórias assustadoras e, obviamente, para Cleo, a saudade da mãe que, trancada no quarto, busca coragem para abrir a porta. Há vida lá fora.
17 Blocks, Davy Rothbart, 2020
17 Quadras é um filme-tributo que acompanha a família Sanford-Durant de 1999 a 2019. São 20 anos de uma história que ecoa em muitas pessoas do mundo. É sobre juventude, sobre esperança, sobre filhos, sobre oportunidades e, principalmente, sobre vidas ceifadas e um destino que já parece vir selado àqueles que nascem negros.
Cheryl, a mãe, lamenta a dor de perder um filho. “Há dores piores que outras e algumas dores nunca se vão”. Até quando histórias como a de Cheryl e dos Stanford-Durant irão se repetir? Assistir a 17 Quadras é pensar com tristeza: “já vi essa história tantas e tantas vezes…”
Para alguns, as escolhas dos pais refletem nos filhos. E para Cheryl, é emocionante voltar ao lar onde sua família cresceu e dizer que tudo o que se sucedeu na família e ali fora culpa sua. No terceiro ato, pelo menos, o documentário de Davy Rothbart se encerra com as esperanças renovadas, chega de tristeza, é como diz Cheryl: eu acredito na esperança, se há esperança, vai dar certo.
Miss Marx, Susanna Nicchiarelli, 2020
A trilha punk rock do início, se não dá o tom do desenrolar da narrativa, ao menos, deixa clara uma coisa: Susanna Nicchiarelli promove a cinebiografia de Eleanor Marx, filha de Karl Marx, como uma forma de rebeldia. Ora, a pioneira do feminismo socialista não é tão reverenciada quanto o pai (pelo menos no cinema), por isso, um filme desse, pra chamar atenção, tem que chegar chutando algumas portas.
No entanto, a rebeldia do punk não se vê aplicada nos meandros que Nicchiarelli percorre neste recorte da vida de Eleanor, também conhecida como Tussy. Se por um lado a personagem principal é excelentemente interpretada por Romola Garai – aliás, mais uma cinebiografia de Nicchiarelli na qual a atriz principal se destaca, a exemplo de Trine Dyrholm em Nico, 1988 (2017) – por outro lado, a história é completamente refém de suas agendas, seja a feminista, a socialista, a polícia e a documental.
Espanta descobrir que apenas Nicchiarelli assina o roteiro, pois a unidade do filme parece comprometida no sentido de que alguns temas surgem mais para pontuar as lutas de Eleanor do que são desenvolvidos com naturalidade. Quando fala sobre o socialismo, Eleanor olha para a câmera e discursa um monólogo. Quando fala sobre o feminismo, ela interpreta num teatro cômico. Quando luta contra o trabalho infantil, surge uma cena em uma fábrica. Cabe espaço ainda para colagens de fotos antigas de greves que dão estofo ao tema.
Mesmo refém dos temas, Nicchiarelli destaca com legitimidade a importância de Eleanor para as lutas que travava seja o movimento feminista socialista ou as ações contra o trabalho infantil.
Dessa forma, Miss Marx vale como registro desta personagem histórica, já como cinema, mesmo com um design de produção caprichado e uma trilha sonora punk, não derruba tanto o sistema assim.
Panquiaco, Ana Elena Tejera, 2020
Há algo meio Ex-Pajé e Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos neste documentário da panamenha Ana Elena Tejera. Ela conta a história de Cebaldo, um homem de origem indígena que mora em Portugal e que, tantos anos depois, acabou se desvinculando de sua ancestralidade.
Em busca do seu eu, Cebaldo retorna à aldeia onde cresceu e, por meio de vários rituais e memórias resgatadas, se limpa do mundo para se conectar novamente consigo mesmo.
Citei Ex-Pajé pois Cebaldo busca sua cura nas águas após longa exposição ao mundo do homem branco, assim como o pajé do filme de Luiz Bolognesi mantém sua espiritualidade atrelada à natureza, embora esteja exposto à inquisição evangélica. Já em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, o jovem Ihjãc é incumbido de encontrar paz para a alma de seu falecido pai, assim como Cebaldo vai em busca de paz para sua própria.
Dizem que águas passadas não movem moinhos, mas é justamente nas águas do passado que Cebaldo se reconecta à sua cultura e volta ao seu estado de espírito natural.
“O reflexo da alma habita na água” surge escrito na tela. Cebaldo resgata aquilo que lhe completa e que parecia perdido.
Tejera traça um interessante paralelo entre a história de Cebaldo com o mito de Panquiaco, indígena que conduziu o explorador espanhol Vasco Núñez de Balboa ao descobrimento do Oceano Pacífico e depois se jogou às águas do mar.
Se o filme é encenado, ao menos é possível identificar muita verdade nos conflitos internos de Cebaldo. O seu silêncio e contemplação são tomados pelo barulho das águas que lavam seu corpo e sua alma e lhe renovam.
Gênero, Pan – ★★★
Lahi, Hayop, Lav Diaz, 2020
Mesmo percorrendo um caminho já visitado muitas vezes, impressiona como Lav Diaz consegue propor um estudo social e antropológico ao jogar três homens tão diferentes numa floresta e, ao mesmo tempo, contar uma história com tons de suspense sobre a mítica ilha de Hugaw e sobre o passado das Filipinas, algo recorrente em seu cinema.
Sua câmera estática nos torna observadores daquela aventura, algo científico até, analisamos as atitudes dos homens e como eles vão se corrompendo. A natureza humana é vil e cruel, Lav Diaz sabe e potencializa isso, principalmente na última hora.
Não é a toa também que o diretor foi premiado no Festival de Veneza, seu senso estético faz de Gênero, Pan um trabalho de autor. Deixar uma câmera parada filmando a encenação dos atores parece fácil, mas as escolhas de Lav Diaz fazem diferença, a exemplo da luz do sol que explode o contraste da fotografia em preto e branco dando todo um ar sobrenatural à história.
Naquele universo micro onde valores culturais filipinos são discutidos, Lav Diaz trata de um tema macro como a corrupção do homem. Já foram feitos muitos filmes assim, mas um Lav Diaz é sempre um Lav Diaz. Único, ainda que razoável.
Asa Ga Kuru, Naomi Kawase, 2020
Se um dia me perguntassem quem filmaria melhor o nascer do sol, sem dúvida alguma, Naomi Kawase seria o primeiro nome que me viria à ponta da língua.
Vejo em Kawase uma das melhores cineastas contemporâneas para lidar com o sensorial. Basta assistir ao seu segmento em Feito em Casa, lançado pela Netflix neste ano. Ela contempla como poucos.
Por isso, é empolgante imaginar as possibilidades de Kawase em uma história como a de Mães de Verdade, onde a emoção e os sentimentos estão à flor da pele e o afeto e a singeleza são cruciais ao lidar com personagens tão humanos.
Afinal, a espera de um casal pelo filho adotivo ou até mesmo a angústia de uma jovem que não está pronta para ser mãe são realidades que exigem um trato bastante sensível.
No entanto, por mais bela que seja a forma com que Kawase filma as duas histórias, ela utiliza de uma batida estrutura em flashbacks e, ao invés de caminhar pra frente, retrocede no tempo para ir nos mostrando paulatinamente as trajetórias daquelas mães.
De início, conhecemos o casal Kiyokazu (Arata Iura) e Satoko (Hiromi Nagasaku) e seu filho Asato (Reo Sato). Um evento na escola de Asato serve para mostrar que a ligação da mãe com o menino é muito forte.
Kawase então encaminha o primeiro flashback, no qual descobrimos que Asato é adotado e que o casal enfrentou muitas dificuldades para poder adotá-lo. Kiyokazu não consegue ter filhos pois sofre de azoospermia – e acaba que é interessante o longa tratar de uma disfunção no homem, já que geralmente a mulher é quem carrega este fardo nos filmes.
Após conhecermos a dura trajetória do casal até a adoção de Asato se concretizar, somos apresentados à mãe biológica do garoto, a jovem Hikari (Aju Makita) que engravidou aos 14 anos de um colega de escola e, anos depois, retorna para reivindicar a guarda do menino.
O que acontece? Sim, mais um longo flashback no qual retrocedemos para compreender agora toda a caminhada de Hikari, seu embate com os pais e o apreço por Shizue (Miyoko Asada), líder instituição para onde ela vai após sair de casa.
Por mais que Kawase traga algumas belas passagens e seu estilo ainda esteja evidente, o tom excessivamente didático acaba se sobrepondo a quaisquer tentativas de emocionar. Quanto mais Kawase retrocede, mais vamos perdendo o interesse por aqueles personagens.
Ao final, fica a beleza da história, mas sua trajetória não emociona como se imaginava que fosse.
Coronation, Ai Weiwei, 2020
Salvo engano, falta de acesso ou desconhecimento meu, Coronation é o primeiro filme que trata da pandemia do coronavírus e da quarentena que atingiu o mundo em 2020 de forma mais direta.
O diretor e ativista chinês Ai Weiwei sabe aproveitar as oportunidades, assim como fez em Human Flow, no auge da crise dos refugiados, em 2017. Sem poder ir a Wuhan, epicentro da pandemia, Weiwei realiza um mosaico de vídeos e relatos de pessoas que ficaram na cidade – o diretor editou o filme remotamente da Europa.
A partir da perspectiva e vídeos caseiros destas pessoas, vamos acompanhando como o governo chinês lidou com o início, o durante e o pós lockdown. São histórias que não merecem ser silenciadas e que mostram como a desinformação é um dos grandes males dos nossos tempos.
Se no começo Coronation flui num ritmo mais truncado, na segunda metade, o documentário apresenta personagens mais simpáticos, como a senhorinha comunista ignorante (no sentido de desinformada) e traz relatos mais revoltantes, deixando evidente a crítica de Weiwei à forma repressiva e até desumana com que os agentes do governo lidavam não só com os parentes das vítimas, mas também com as próprias.
Difícil prever o que virá a ser do documentário. Visto hoje, funciona para comover e impressionar, pois traz relatos que dignificam o projeto. Daqui a alguns anos, pode ser que sirva como material de estudo para compreender nosso atual momento e o que não se fazer em pandemias como esta que estamos enfrentando.
De qualquer forma, Weiwei denuncia o que mais faltou e o que ainda necessitamos neste momento: respeito pela humanidade e pelas vidas.
Para mais informações, acesse mostra.org.
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