O legado de Alan Parker (1944-2020)

Durante um bom tempo da minha vida de cinéfilo, Alan Parker foi um dos meus diretores favoritos. Seus filmes eram pop, divertidos e de grande sensibilidade, sem falar no que os franceses chamam de mise-en-scène, que geraram sequências emblemáticas como a visita da namorada de Billy Hayes (Brad Davis) na prisão turca em Expresso da Meia-Noite; a jam session no almoço da escola de artes em Fama; o show de rock que vira comício nazista em The Wall; Robert De Niro descascando e engolindo um ovo inteiro em Coração Satânico; e Evita/Madonna dançando tango com Che/Banderas em Evit”. Morreu na semana passada rotulado como “especialista em musicais”, mas foi muito mais que isso.

Alan Parker começou a chamar a atenção em Bugsy Malone – Quando as Metralhadoras Cospem (1976), um filme de gangster com crianças, estrelado por uma Jodie Foster sensualizando aos 12 anos. Ninguém reclamou, já que no mesmo ano ela tinha sido a prostituta Iris em Taxi Driver. Dos tiroteios com chantilly, ele foi para a barra pesadíssima de O Expresso da Meia-Noite (1978), com roteiro de Oliver Stone (ganhador do Oscar pelo trabalho), sobre o relato autobiográfico de Billy Hayes, preso em Istambul por tráfico de drogas.

Em 1980, outro sucesso, Fama, sobre um grupo de alunos de uma escola de artes em Nova York. A música-tema virou hit, ganhou o Oscar, Irene Cara se tornou estrela por algum tempo. Deu origem a uma série de televisão (1982-1987) com parte do elenco original e um remake que ninguém viu em 2009. Dois anos depois, ele dirige o ambicioso The Wall – O Filme, estrelado por Bob We Are the World Geldof. O álbum de 1979 é um dos dois mais icônicos do Pink Floyd – junto com The Dark Side of the Moon – , inteiramente concebido por Roger Waters. Parker transformou a ego trip do vocalista/baixista num longa recheado de imagens inesquecíveis.

Em 1984 ele lança uma obra hoje esquecida, Birdy – Asas da Liberdade, que muitos viram como uma imitação de Voar é com os Pássaros, de Robert Altman, mas que era baseado num romance de William Wharton. Matthew Modine, um ator que estava na moda e que hoje é conhecido como “pai” da Eleven de Stranger Things, era Birdy, um garoto que sonhava em voar como os pássaros, mas ao invés disso é mandado ao Vietnã, e Nicholas Cage fazia Al, seu melhor amigo. A trilha sonora original era de Peter Gabriel e a produção ganhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes.

Polêmica

Robert De Niro em Coração Satânico

Três anos depois, Parker realiza Coração Satânico, que voltou a ser lembrado recentemente por causa de uma polêmica levantada por Mickey Rourke contra seu colega de elenco, Robert De Niro. Rourke era o detetive Harry Angel, contratado pelo misterioso Louis Cyphre (De Niro) para encontrar um cantor chamado Johnny Favorite, e na época estava em alta por causa do soft porn Nove Semanas e Meia de Amor e de trabalhos como O Selvagem da Motocicleta.

Por algum motivo, De Niro resolveu destruí-lo em cena, o que fez com grande eficácia, a ponto da carreira de Rourke entrar em decadência em seguida. Jean-Luc Goddard odiava o filme, mas era um bom terror sexy, graças à estreante no cinema Lisa Bonet, que perdeu o emprego em The Cosby Show porque mostrou os seios (vendo em retrospecto, após as acusações de abuso sexual contra Bill Cosby, é até uma ironia).

O ano de 1988 traz Mississipi em Chamas, que ressuscitou a saga da luta pelos direitos civis nos anos 60 no sul dos EUA. Gene Jackman e Willem Dafoe interpretam dois agentes do FBI que investigam a morte de um ativista (branco), e tem que enfrentar a oposição do establishment local, dominado por membros da Ku Klux Klan. Hoje, pode ser visto como mais um filme condescendente sobre o racismo com elenco predominantemente branco, mas na época cumpriu seu papel.

O preconceito voltou a ser tema de seu trabalho seguinte, só que contra descendentes de japoneses. Bem-Vindos ao Paraíso (1990) foi a primeira grande produção sobre a internação dos nikkeys americanos em campos de concentração durante a II Guerra Mundial, estrelado pela ex-namorada do Karatê Kid, Tamlyn Tomita (que chegou a fazer um filme brasileiro, Gaijin – Ama-Me Como Sou).

The Commitments e Evita

No ano seguinte, Parker voltaria ao musical com The Commitments – Loucos pela Fama, um dos favoritos deste crítico, de Quentin Tarantino e do próprio diretor. Conta a saga de um grupo de irlandeses que resolvem montar uma banda de soul music. “Soul music? Mas isso é música de negros!” “Os irlandeses são os negros da Europa e os dublinenses são os negros da Irlanda. E os nortistas de Dublin são os negros da cidade. Então, digam uma vez e digam alto: sou negro e com orgulho!”. Sensacional. Foram feitas audições de verdade para a seleção da banda e descobriram o adolescente Andrew Strong, com voz de soulman e que ajudou o álbum com a trilha sonora ser um sucesso.

Em 1996, ele assume o projeto de adaptar o musical Evita, de Tim Rice e Andrew Lloyd Weber, para o cinema. Madonna se identificava com a mítica ex-primeira dama argentina e fez campanha pessoal para ter o papel. Depois de escalada, jogou seu charme para cima de Carlos Menem a fim de conseguir a libração da Casa Rosada para a cena do Don’t Cry for Me, Argentina.

O resultado é sua mais memorável atuação no cinema (que lhe rendeu seu único prêmio como Atriz, o Globo de Ouro). Os hermanos odiaram o retrato de sua mãe dos descamisados como uma arrivista que não hesitava em ir para a cama para conseguir o que queria. Jonathan Price foi o Juan Domingo Peron do filme, vinte anos antes de viver outro argentino famoso, o papa Francisco. Antonio Banderas conseguiu o papel de Che Guevara cantando e dançando na frente de Alan Parker durante um almoço.

O último trabalho do cineasta foi A Vida de David Gale (2003), com grande elenco – Kevin Spacey, Kate Winslet, Laura Linney – mas pouca repercussão. Doze anos depois, ele anunciou sua aposentadoria alegando dificuldades para fazer filmes como ele desejava.

Rotulá-lo como diretor de musicais limita em muito o entendimento de sua obra, bastante eclética, mas unida por sua capacidade de mise-en-scène, como disse no início. Que sua morte sirva, ao menos, para uma digna revisão de sua obra, para mim, memorável.

Marcos Kimura http://www.nerdinterior.com.br

Marcos Kimura é jornalista cultural há 25 anos, mas aficionado de filmes e quadrinhos há muito mais tempo. Foi programador do Cineclube Oscarito, em São Paulo, e técnico de Cinema e Histórias em Quadrinhos na Oficina Cultural Oswald de Andrade, da Secretaria de Estado da Cultura.

Programa o Cineclube Indaiatuba, que funciona no Topázio Cinemas do Shopping Jaraguá duas vezes por mês.

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