Review | A Voz Suprema do Blues (Netflix)

A Voz Suprema do Blues estreou recentemente na Netflix como outra aposta para o Oscar neste ano atípico. Registra a última atuação de Chadwick Boseman, o Pantera Negra, que morreu de câncer em agosto de 2020. Mas o projeto remonta a 2015, quando Denzel Washington anunciou que iria levar para a telona todas as dez peças de August Wilson do Ciclo do Século, em que o dramaturgo vencedor do Prêmio Pulitzer aborda a vida cotidiana dos negros americanos ao longo da história.

O primeiro projeto foi Um Limite entre Nós (2016), que o astro dirigiu e estrelou, e que deu o Oscar de Atriz Coadjuvante para Viola Davis. Obviamente, ela atendeu ao novo convite de Washington, assim como Boseman, de quem ele foi patrono desde os tempos de faculdade.

A Voz Suprema do Blues, no original, Ma Raney’s Black Bottom (muito menos pomposo que a versão brasileira, e se refere a um tipo de dança em voga na época), é o segundo filme dessa iniciativa, e desta vez Washington fica apenas na produção executiva, deixando a direção a cargo de George C. Wolfe (Noites de Tormenta).

Ma Raney é uma cantora real, contemporânea, amiga e rival da muito mais famosa Bessie Smith. Se esta, conhecida como Imperatriz do Blues, foi sepultada numa cova anônima e teve que esperar até 1970 para que Janis Joplin e Julieta Green, ex-empregada doméstica de Bessie, pagassem por uma lápide para ela, imagine o esquecimento que se abateu sobre a memória de Raney, que tinha entre seus “imitadores” um certo Louis Armstrong. A própria produção do filme encontrou apenas seis fotos dela, segundo o documentário A Voz Suprema do Blues: Bastidores, que também está disponível na Netflix.

Despedida

Embora ela seja a personagem-título, o protagonismo é dividido com o trompetista Levee (Boseman), um ambicioso músico que sonha em deixar a banda de Raney e criar seu próprio combo. O personagem, fictício, representa os milhares de negros que deixaram o Sul e se mudaram para as grandes cidades do Norte, acreditando nas promessas de maiores oportunidades longe das leis segregacionistas, chamadas “Jim Crow”, e da vida rural sem perspectivas.

Hoje, o episódio é conhecido como A Grande Migração, e fizeram de Chicago, Kansas City e Nova York grandes centros da música negra americana. A própria Ma Raney, muito popular no Sul, como é mostrado na abertura do filme, tornou-se a primeira negra a gravar um disco, visando atingir o crescente público afrodescendente nos centros urbanos.

A atuação de Chadwick Boseman é mesmerizante e Viola Davis encarna a matrona Raney com a habitual competência, mas seus momentos marcantes acontecem em monólogos, havendo pouca interação entre os personagens. Os confrontos acabam acontecendo com coadjuvantes e não entre entre os personagens principais, cujo desentendimento principal é por ciúme, fator secundário na trama.

Em todo o caso, vale a pena assistir a entrega de Boseman, que talvez soubesse que este seria seu último trabalho, e mesmo fisicamente debilitado, entrega uma performance digna de Oscar.

SPOILER: Ao final, a música de Levee é apropriada por uma banda de brancos, inspirada na de Paul Whiteman, que é a referência de jazz para Theodor Adorno em seu demolidor ensaio O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. O único problema é que aquilo não era jazz, como atestaria outro grande teórico marxista, Eric Hobsbawn.

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Marcos Kimura http://www.nerdinterior.com.br

Marcos Kimura é jornalista cultural há 25 anos, mas aficionado de filmes e quadrinhos há muito mais tempo. Foi programador do Cineclube Oscarito, em São Paulo, e técnico de Cinema e Histórias em Quadrinhos na Oficina Cultural Oswald de Andrade, da Secretaria de Estado da Cultura.

Programa o Cineclube Indaiatuba, que funciona no Topázio Cinemas do Shopping Jaraguá duas vezes por mês.

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