Review | Duna: Parte 2

Finalmente Duna: Parte 2 dá o tão esperado ar da graça para o público! O épico ecológico de arte conceitual abraça agora o tom mais popular e põe em cheque a religiosidade com trama política por poder econômico. Em outubro de 2021, as plateias de cinema do mundo todo foram agraciadas com Duna, a terceira tentativa de tradução para audiovisual do premiado livro homônimo de Frank Herbert, de 1965.

A primeira tentativa, apesar de dirigida pelo lendário David Lynch, em 1984, infelizmente foi um desastre de decisões criativas questionáveis, como o horror corporal deslocado e os pensamentos narradores dispensáveis. É uma pena que ela seja a única construção materializada desse universo que o autor teve contato, já que faleceu dois anos depois.

 

Mas, talvez isso nem lhe importasse muito, visto que sua mente já estava no sexto livro (que compõe a 2ª fase) dessa série de ficção científica de feudos medievais interplanetários, que foi equiparada, por muitos críticos, à rica complexidade (de culturas, etnias, idiomas, tramas políticas e reflexões filosóficas) criada nove anos antes em O Senhor dos Anéis e que se tornou parâmetro para o gênero, como visto nos filmes da saga Star Wars.

A ARTE INCOMPREENDIDA AGORA CELEBRADA

Como o mundo ainda começava a sair do clima da pandemia, quando a versão recente de Duna estreou, isso afetou sua percepção pela audiência, que pôde conferi-lo de forma banal em lançamento simultâneo no serviço de streaming HBO Max.

 

Reconhecido pela crítica e pela Academia, com 6 Oscars, a bilheteria daquele filme foi somente o suficiente para os executivos da Legendary e da Warner darem o aval para a produção dessa sequência (Dessa vez, para melhor desenvolvimento, a adaptação havia sido apenas da metade do primeiro livro, fazendo com que a continuação fosse algo primordial e não um típico adicional).

 

Até então, parte do público reclamava bastante do ritmo lento e de caráter conceitual do filme, muito por o terem conferido em casa e não no cinema, o lugar ideal, pela grandiosidade, de transportar da Terra para outra galáxia, quem imerge no filme e não só tabula informações de fatos mostrados em tela.

 

Esse estilo contemplativo, que causa sensações diversas, é uma marca da era moderna do cinema, apropriada com vigor e muito bem experimentada pelo diretor, o franco-canadense Denis Villeneuve, realizador dos maravilhosos A Chegada (2016) e Blade Runner 2049 (2017).

UM POUCO DE ESPECIARIA NÃO FAZ MAL A NINGUÉM

Apesar de manter essa atmosfera um tanto quanto autoral em Duna: Parte 2, é nítido que ele fez concessões para o estúdio para a obra angariar mais fãs, que agora conta com mais diálogos, cenas de ação e, pasme, até alívio cômico, centrado na personagem do Javier Bardem (Piratas do Caribe, 2017). Nada tão destoante, algo pontual e até bem vindo, dentro do contexto de sua ingenuidade e ansiedade.

 

Enquanto (agora reintitulado) Duna: Parte 1 apresentava as personagens, estabelecia as regras do mundo e a premissa da trama, Duna: Parte 2 se dá o luxo de seguir adiante, sem solenidades, tendo por base que o público tenha se dedicado ao seu prólogo, anos atrás. A própria fotografia expressa isso, com objetos e lugares não tomando mais a imponência formal do centro da tela. Aqui há mais assimetrias e menos movimentação de câmera para “trivialidades”, o que é uma pena.

 

Ainda assim, foi mantida a calma na exposição de maquinários, para conferir maior sensação de tangibilidade e, desse modo, nada deixa de ser fabuloso. As cenas do planeta dos Harkonnen foram filmadas com câmeras infravermelho, que não só somem com as cores, como lhe aplicam uma textura de pureza artificial, algo muito propício para o mal que não se vê como tal. Algo nada gratuito, vide a peculiaridade do sol que ilumina aquele local.

NUS SOB O SOL?

Isso só mostra a admirável sintonia que Villeneuve e Greig Fraser tiveram na concepção fotográfica, onde nada fica em modo automático, por se tratar duma sequência, mas sempre há espaço para o desenvolvimento de novas ideias artísticas, ainda que muitas não sejam originais, mas baseadas nos quadrinhos franco-belgas de Moebius e Druillet. Todas ideias muito bem acertadas, dos aspectos imaginativos aos técnicos, dos equipamentos próprios para Imax ao uso pontual da iluminação natural. Dos planos muito abertos nos cenários aos muito fechados nos rostos dos atores.

 

Por mais divinas que sejam as paisagens desérticas da Jordânia e de Abu Dhabi, onde ocorreram as filmagens, quem assiste realmente se sente noutro planeta, onde um verme gigante pode emergir das areias a qualquer instante. Esse receio ocorre pelo primor dos imperceptíveis efeitos visuais e pela ênfase de circunstância de risco dada pelo desenho sonoro muito bem trabalhado, que se mescla com a trilha musical fascinante composta pelo genial Hans Zimmer.

 

É impressionante o quanto ele tenha conseguido elevar ainda mais o nível do que já era belíssimo no filme anterior, com corais ora tribais, ora etéreos, muito sopro, percussão e instrumentos de cordas, tanto elétricos quanto baseados em culturas orientais e umas badaladas de sinos como a cereja do bolo.

 

Mas, não surpreende (e tudo bem) que as imagens remetam à (também linda) Sob o Sol, do Marcus Viana. Ou ainda à (deliciosa) Desert Rose do Sting (uma contribuição melhor ao mundo do deserto, do que sua atuação no Duna de 1984). Ambos referenciais poéticos são válidos para o público brasileiro.

FINALMENTE UM TEOR DE JODOROWSKY?

O filme também foi rodado na Itália e na Hungria, em cenários imensos que oprimem e fascinam, contribuindo para a escala colossal cinematográfica proposta no passado (e engavetada) pelo quase centenário Alejandro Jodorowsky (A Montanha Sagrada, 1973).

 

Aliado a isso estão os figurinos esquisitíssimos e deslumbrantes, que parecem saídos das passarelas de desfiles de moda mais movimentadas da contemporaneidade, mas que foram todos estudados pela brilhante Jacqueline West através da Enciclopédia Duna, de Willis McNelly e de conceitos de Keith Christensen, além da inspiração no oriente médio, aprofundada por sua estada no Marrocos.

 

Aliás, em tempos de exploração de representação de diversidades étnicas, cai como uma luva o direcionamento dessa história a uma clara alusão à colonização europeia e a conflitos do ocidente com o oriente médio. Essa tonalidade é o que enriquece e muito o subtexto e a atmosfera do conto, então deve ser ressaltado o quanto isso deve ser valorizado, já que é algo que soa fluido e óbvio agora, mas que foi tratado de forma genérica outrora (como pela segunda adaptação para a tv, em 2000). Esse aspecto é o que dá credibilidade de que a humanidade poderá mesmo ser assim num possível ano 10.191.

PROFECIA E/OU ROTEIRO

Nesse ano, a Casa Atreides parte de seu planeta natal para Arrakis (Duna), a mando do Imperador do cosmo conhecido, para tomar conta da produção de uma especiaria usada como combustível para viagens no espaço. Praticamente não há mais água lá, então a população local (os fremen) precisa de trajes que reciclem o suor (e demais líquidos) do corpo.

 

Além disso, ela usa a especiaria como parte de ritos religiosos lisérgicos e, diante de tal fato, há uma profecia do surgimento de um messias, que salvará o seu deteriorado mundo. Não o suficiente, a casa Harkonnen disputa esse domínio, dizimando quem atravessa o seu caminho, inclusive os Atreides, família da qual faz parte o protagonista dessa jornada.

 

Então Paul, o duque herdeiro, se une aos fremen, na busca de vingança pessoal e libertação daquele povo. E é nesse ponto em que esse filme se inicia. À medida em que o jovem vai da resistência à aceitação do papel de grande salvador, sua mãe, membro de uma poderosa seita religiosa, as Bene Gesserit, manipula toda uma situação para que a profecia se concretize.

DO GIF AO CO-PROTAGONISMO

É muito curioso que não fique claro se ela só acredita realmente naquilo ou se ela só almeja que seus planos deem certo. E o público aberto à autocrítica pode refletir, à sua medida, o mesmo questionamento: profecias religiosas realmente podem se realizar ou só se realizam justamente porque alguém força que elas se concretizem?

 

Tal questionamento é enfatizado por Chani, par romântico de Paul, que se encanta pelo rapaz, mas desdenha de seu papel místico e expressa com veemência uma resistência cética à mitologia de seus conterrâneos. Para ela, tudo não passa de mais uma faceta de poder sobre a massa.

 

A garota que surgia em meros lapsos de visões do futuro, no primeiro filme, agora tem um papel dramático muito bem aprofundado, apesar de divergir da sua versão literária. Outra alteração executada foi quanto à irmã de Paul, um curioso bebê no ventre e não uma criança prodígio recém nascida. São dela alguns momentos de devaneios visuais mais experimentais do filme.

UMA GALÁXIA ALÉM DE HOLLYWOOD

Chani é interpretada pela jovem Zendaya. Depois da série Euphoria, eis finalmente um papel à altura de seu talento. Aliás, talento em atuação é o que não falta em Duna. A mãe de Paul, encenada pela lindíssima Rebecca Ferguson (Missão Impossível 5-7, 2015-23), é um deleite de ver. O que essa mulher tem de beleza, tem de talento.

 

Sim, mérito da caracterização de maquiagem e penteado também, claro, que transformou não só ela, mas também de forma absurda os calvos Harkonnen: o ex-lutador Dave Bautista (Guardiões da Galáxia 2014-18), o sueco Stellan Skarsgard (Thor, 2011) e o hipnotizante Austin Butler (Elvis, 2022). Que adição fantástica ao elenco, a desse homem! É gratificante ver um ator explorar diferentes abordagens, por mais que a indústria de cinema seja acomodada em conferir a atores sempre papéis de arquétipos consolidados no mercado.

 

Outras adições muito positivas são a de Florence Pugh como a Princesa Irulan (Oppenheimer, 2024), Christopher Walken como seu pai, o Imperador (A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça, 1999) e Léa Seydoux, uma Bene Gesserit (007, 2015-21). Em algum ponto, suas presenças compensam as despedidas de parte do elenco do outro filme, composto pelo divino Oscar Isaac, como o Duque Leto Atreides (Star Wars, 2015) e o surpreendente Jason Momoa, como Duncan (Aquaman, 2018). Por outro lado, voltam com mais impacto Josh Brolin como o mentor de Paul (Vingadores, 2019) e Charlotte Rampling, uma Reverenda Madre (Operação Red Sparrow, 2018).

LISAN AL GAIB, USUL MUAD’DIB!

Essa constelação cinematográfica não seria o suficiente para o sucesso desse filme, se não fosse por todos os aspectos artísticos aqui citados, pelo roteiro muito bem conduzido, pelo direcionamento dado pelo grande artista que é Villeneuve e, claro, pelo protagonismo fabuloso de Timothée Chalamet.

 

Curiosamente, ele chamou a atenção em seu ano de estreia no cinema por uma breve participação em outro filme de ficção científica, Interestelar (Christopher Nolan, 2014). Mas, despontou de vez no romance gay Me Chame pelo seu Nome (Luca Guadagnino, 2017) ao lado do esculpido em Carrara, Armie Hammer.

 

A partir dali, os mundos da moda e da cinefilia fixaram os olhos no pupilo, que finalmente provou que estávamos certos: Ele não é só um rosto muito bonito, mas uma explosão de aptidão interpretativa. Seu Paul Atreides evolui de um jovem inofensivo a um líder combativo de forma impressionante. Há momentos catárticos de assustar. Até que ponto chega uma pessoa em posse de estrondoso poder e como lidam com isso os seus fiéis?

O FUTURO ÀS BENE GESSERIT PERTENCE (OU A DENIS VILLENEUVE)

Isso é o que fica de gancho para a sequência. O conteúdo do primeiro livro foi concluído com maestria nesse filme. Messias de Duna, o segundo livro, tem menos da metade de páginas de seu antecessor e é uma espécie de epílogo dessa parte da história. O livro seguinte já expande esse universo para outra escala, com outras personagens e fica a título de curiosidade para fãs mais aficionados. Ao menos, o próximo livro, portanto, deve dar origem ao encerramento da trilogia de filmes no cinema.

 

Duna: Parte 2 não entrou em cartaz em outubro de 2023 devido à greve de roteiristas e de atores. Tal evento alterou todo o calendário do Cinema por pelo menos um ano. Ironicamente, sua estreia está há uma semana da cerimônia do Oscar. É de se pensar como a disputa pelos prêmios seria, se estivesse presente.

 

Certamente, na do ano que vem ele estará. A pergunta que fica então é: Depois dele, o quê dessa magnitude haverá para lhe alcançar até lá? Uma fantasia alienígena tratada com devida seriedade, em escala épica, de força dramática, elementos ecológicos, místicos e políticos, com louvor, Duna é um marco no Cinema.

Bruno Tiozo http://www.nerdinterior.com.br

Designer e acadêmico do Instituto de Artes de Campinas, propõe reflexão crítica no apreço às expressões poéticas das artes audiovisuais. Foca no Cinema ficcional, cujos filmes em mídias físicas coleciona como souvenir de universos visitados, de modo que as memórias na estante sirvam para inspirações constantes.

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