No prólogo de O Agente Secreto, vemos o personagem de Wagner Moura chegando em um posto de estrada para reabastecer. Logo, ele percebe que tem um defunto logo ali, já fedendo a decomposição. Ele engata para sair, mas é interceptado pelo solitário frentista, que pede que ele manobre para perto da bomba e explica que o morto era um ladrão que tentou assaltar o local, mas acabou levando um tiro do funcionário do turno. Nosso herói olha o indicador de combustível quase zerado, e resolve abastecer, apesar do cenário macabro. Logo em seguida, para uma viatura da Polícia Rodoviária Federal chega ao posto e, ignorando o “presunto”, aborda o único cliente, manda ele sair do fusca, revista o porta-luvas, olha o extintor e ao fim da “geral” indaga se o cidadão não poderia contribuir com a caixinha da polícia. Wagner, o ator do século XXI e o personagem nos anos 70, participa e assiste à cena num misto de tensão – ele é um homem em fuga – e estupefacção pelo surrealismo. Mas é um retrato dos anos de chumbo, em que mortos ficavam ao léu e os pequenos poderes exerciam sua ganância. Eu, adolescente na época, lembro de coisas parecidas, inclusive os dois primeiros cadáveres vítimas de crime que vi, na Estrada dos Amarais, em Campinas.
Kleber Mendonça Filho recria a Recife da época, e seu filme anterior, Retratos Fantasmas, foi fruto da pesquisa necessária para a realização de O Agente Secreto. O espectador é transportado para os anos 1970, dos detalhes de direção artística ao clima paranóico que fazia com que segredos fossem silenciados em conversas privadas.
Marcelo, que é como Wagner se apresenta, chega na capital pernambucana para ficar numa curiosa hospedagem de refugiados, gente que, por um motivo ou outro, está fugindo de alguém ou alguma situação. A dona e gerente é dona Sebastiana (Tania Maria, que estreou em Bacurau), uma mulher que se revelará bem mais do que a senhora simpática que acolhe a todos com empatia.
Nosso protagonista tem um filho, Fernando, que está sendo criado pelos avós maternos, depois que Fátima (Alice Carvalho), mulher de Marcelo, faleceu de forma não totalmente revelada, mas é muito por conta dela a perseguição sofrida pelo marido.
Com um roteiro tão intrincado, é impossível discutir o filme sem spoilers, então, alerta daqui para frente.
Marcelo, que na verdade se chama Armando, é um professor universitário que ofendeu um empresário paulista que ganhou um cargo público na Eletrobrás e foi até a Universidade de Pernambuco para desmontar pesquisas de ponta desenvolvidas lá e, se possível, pegar para sua empresa as iniciativas de maior potencial lucrativo. O entrevero num restaurante faz com que o tal magnata se ressinta a ponto de não apenas acabar com o departamento de Armando, como também plantar uma denuncia de corrupção contra ele e ainda encomendar sua morte. Parece exagero? Não nos tempos dos coronéis, ou mais tarde, na era dos capitães da indústria, alguns dos quais contribuintes ativos da Operação Bandeirantes, a famigerada Oban. O capital, como diz Thomas PIcketti, é patrimonial e hereditário.
Outro núcleo curioso é centrado no delegado Euclides (Roberto Diógenes), praticamente uma caricatura (mas nem tanto) dos policiais do cinema dos anos 70, que faz questão de desfilar seu autoritarismo em cima dos populares e subserviência com a elite. O episódio do depoimento da madame que deixou a filha da empregada sair de casa para ser atropelada na rua ecoa em evento de 2020, no mesmo Recife, só que a criança caiu no poço do elevador.
Kleber tem alternado seus filmes entre o protagonismo coletivo dos primeiros Einsenstein – casos de O Som ao Redor e Bacurau – e os que tem um herói individual – casos de Aquarius e este O Agente Secreto. No primeiro, o papel principal é de Sônia Braga, talvez a atriz brasileira mais famosa do mundo, hoje em dia seguida de perto pela sobrinha Alice. Wagner Moura também é uma cara conhecida dos americanos graças a seu Pablo Escobar em Narcos e filmes hollywoodianos como Guerra Civil. Em seu papel quase triplo, ele conduz a trama com personalidade multifacetada de Marcelo/Armando, e fecha interpretando o filho Fernando nos dias atuais. O filme ainda se dá ao luxo de contar com coadjuvantes de luxo, como Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone e Hermila Guedes, um sinal do prestígio construído pelo diretor.
Muita gente se decepcionou com o final, mas ele é coerente com uma das linhas principais do roteiro, que é o apagamento da memória, tanto do páis quanto das pessoas. Armando busca registros da mãe, uma serviçal engravidada pelo patrãozinho da casa grande, e Fernando é apresentado a um pai que não conheceu, cuja história oficial mal se resume a uma notícia com viés que interessa aos poderosos. Anticlimático, mas necessário para o que o cineasta deseja apresentar ao Brasil que ainda debate a democracia.
Dito isso, ainda prefiro Bacurau.