Review | Bacurau (Telecine Play)

Descobri, para nossa suprema vergonha, que não havia nenhum review de Bacurau no Nerd Interior, justamente o filme brasileiro mais importante dos últimos anos. Vamos remediar isso já, uma vez que é bem possível que ele vá para o Oscar, da mesma forma como Cidade de Deus, por causa de seu sucesso internacional, uma vez que o comissariado local encarregado preferiu A Vida Invisível.

O filme é uma distopia passada num futuro muito próximo, em que pistas sutis apontam para um país e um mundo alinhados pela extrema direita, Nesse planeta – redondo, como abertura faz questão de frisar, ao som de Não Identificado, com Gal Costa – o vilarejo pernambucano Bacurau é, ao mesmo tempo, um fim de mundo e foco de resistência de organização popular e educação progressista. É onde vivem os indesejados e as putas.

Após o funeral de uma matriarca local, estranhos fatos começam a acontecer, como o sumiço da cidade dos mapas digitais e a visita de um casal de motoqueiros do “sulmaravilha”. São os primeiros sinais que forças ocultas tramam para que o desaparecimento virtual da cidade passe a ser também literal.

Em O Som ao Redor, primeiro filme de Kleber Mendonça Filho, o pano de fundo era a extensão do poder da tradicional oligarquia rural para a moderna área urbana. Em Aquarius, segundo longa do cineasta, era a preservação afetiva e cultural contra a especulação imobiliária na orla do Recife.

Agora, em Bacurau, o cenário é o sertão como uma metáfora do Brasil diante do mundo, e isso é que o torna universal. Com certeza a crítica globalizada enxergou muito mais do que apenas um faroeste caboclo, mas uma sátira de como o Primeiro Mundo de Trump enxerga o Terceiro. Mais ainda: não adianta os americanófilos do Sul-Sudeste acharem que serão considerados iguais pelos ianques. Continuamos – todos – sendo “cucarachas”.

Os internacionais Udo Kier (O Poderoso Chefão 3) e Sônia Braga (O Beijo da Mulher-Aranha)

Cinemascópio

Antes de se tornar cineasta, Kleber Mendonça Filho era um ótimo crítico de cinema em seu blog Cinemascópio (hoje, nome de sua produtora). Todos seus filmes são cheios de referências cinematográficas, mas Bacurau supera os anteriores.

Antes de continuar, aviso de SPOILERS.

O trailer já entrega uma trama com cara de faroeste, mas passa pelo filtro de Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa, inspirado nos westerns americanos. Kleber Mendonça Filho e seu parceiro Juliano Dornelles fazem questão de deixar isso claro nas transições wipe, marca registrada do mestre japonês (que George Lucas homenageou em Star Wars).

Além do mais, a trama: cidadezinha é cercada e ameaçada de destruição por indivíduos fortemente armados e tem que buscar auxílio em um bando de foras da lei.

Logo de início, o caminhão-pipa que abastece Bacurau e dá carona para Tereza (Barbara Colen, de Aquarius) atropela diversos caixões derrubados por um outro caminhão envolvido num acidente. Esse fato bizarro já prenuncias os estranhamentos que estão por vir.

Tereza está vindo da cidade grande para o funeral da avó Carmelita (Lia de Itamaracá, famosa benzedeira) e também contrabandeando medicamentos para a população. A falecida formava com o professor Plínio (Wilson Rabelo, de Doramundo) e a médica Domingas (a internacional Sonia Braga) o tripé que sustenta a comunidade, onde, aliás, fica a “zona” do município de Serra Verde. O prefeito Tony Jr. (Thardelly Lima, de Divino Amor), aliás, em suas visitas eleitoreiras, faz questão de carregar na volta uma puta para seu entretenimento pessoal.

O fim de mundo, no entanto, tem organização popular, educação progressista e medicina da família, sendo um foco de resistência ante o que os detalhes revelam ser um regime fascista no país (a TV anuncia execuções em praça pública em uma passagem).

Mesmo oculto nos confins, o local chama a atenção do que parece ser uma agência de turismo para psicopatas americanos – liderados pelo alemão Michael (Udo Kier, que já fez desde O Poderoso Chefão 3 e Blade até A História de O) – exercitarem seus impulsos homicidas no Terceiro Mundo, ao invés dos Estados Unidos.

Para auxiliar os gringos a matar, o Poder Público local e batedores terceirizados vindos do Sudeste são contratados. Quando percebe o perigo, o ex-pistoleiro Pacote (Thomas Aquino, de O Doutrinador: A Série) vai em busca de ajuda no bando de Lunga (Silvério Pereira, de A Força do Querer), um cangaceiro moderno que luta pelo direito à água (no início, há uma cena de um canal da transposição do São Francisco guardado por homens armados).

O Lunga, de Silvério Pereira, virou uma imagem icônica do filme

O semiárido percorrido por motos, jipes ou caminhões evocam o mundo de Mad Max; as panorâmicas de John Ford; o clímax final mistura Sam Peckimpah com Glauber Rocha e Sergio Leone (a inspiração do wertern spaghetti é nítida) e a motivação dos vilões lembra Westworld, filme e série.

O estilo andrógino de Lunga remete a um mix do Corisco de Deus e o Diabo na Terra do Sol com A Rainha Diaba, de Antonio Carlos da Fontoura. A cinefilia de Kleber Mendonça Filho, no entanto, ao contrário da exercida por Quentin Tarantino, está a serviço de uma agenda política.

Não é um cinema panfletário como se fazia nos anos 70, mas ele escolhe um lado. E consegue fazer o espectador pensar ao mesmo tempo em que se diverte. Não é fácil como parece.

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