Review | Estórias Gerais: Edição Comemorativa de 20 Anos (Editora Conrad)

Há quatorze anos eu entrava em contato, pela primeira vez, com a obra de João Guimarães Rosa. Até aquele momento, ainda não entendia o tamanho desse homem. Tive contato com o seu primeiro livro cem anos após o nascimento de Rosa. Isso graças ao meu professor de literatura do Ensino Médio. Na época, o que cogitei ser mais um livro chato da escola, se tornou porta para um maravilhoso mundo novo.

Imediatamente me apaixonei pelo sertão retratado por Guimarães Rosa. Sagarana encantou e ganhou meu coração após o conto A Hora e a Vez de Augusto Matraga. Rosa me apresentou ao sertão de coronéis e jagunços. Do povo humilde, sofrido e cheio de crenças. Do ser humano guerreiro, capaz das maiores valentias e as piores crueldades.

Hoje, quase uma década e meia após conhecer Guimarães Rosa, sinto mais uma vez a emoção de ser transportado a esse universo sertanejo. Dessa vez com Estórias Gerais, de Wellington Srbek e Flávio Colin, quadrinho que ganhou uma edição comemorativa de 20 anos pela Editora Conrad no final de 2021.

A história de Srbek e Colin começa em Minas Gerais, na década de 20, no município fictício de Buritizal. Acompanhamos Ulisses de Araújo, repórter da capital enviado para cobrir os últimos acontecimentos da pequena cidade. Ulisses tem como missão pesquisar a vida de Antônio Mortalma, líder do bando de jagunços que aterroriza a região.

Em Buritizal, o jovem jornalista é bombardeado por causos e folclores sobre o bandoleiro. Alguns afirmam que o homem tem um pacto com o diabo, outros que ele é filho do dito-cujo. Fato é que Mortalma é uma lenda na cidade graças aos seus feitos grandiosos e atrozes.

Quanto mais pesquisa, mais Ulisses se aproxima de Mortalma e da sua guerra contra o bando de Manoel Grande. Conflito esse que está prestes a se intensificar com a chegada do exército liderado pelo coronel Odorico Pereira.

O roteiro de Srbek é ótimo! O texto, que aparentemente é dividido em seis contos fechados, criam uma história única e bem costurada. A cada capítulo, Wellington acrescenta vários causos e flashbacks à narrativa principal. Assim, o roteirista pincela um pouco dos vários conflitos no local, além de trabalhar as crenças e folclores da região.

Porém, a escolha de contar a história de forma não linear em nenhum momento se torna prejudicial. Pelo contrário, Srbek se prova um grande contador de histórias e nunca deixa o roteiro escapar de sua mão. Aos poucos a narrativa faz sentido cronológico e fecha bem todos os ganchos abertos ao longo da jornada.

Os causos e flashbacks também ajudam na construção dos personagens. Cada um dos protagonistas tem a sua voz, o seu passado e as suas motivações. Não existem personagens vazios em Estórias Gerais, todos têm o seu brilho, até mesmo os coadjuvantes. Sendo assim, é impossível que você não se envolva, de alguma forma, com cada um deles.

E o que ajuda a elevar a obra são os desenhos de Flávio Colin. A história cai como uma luva para o seu traço super estilizado. Apesar de parecer um desenho simples, não vemos personagens iguais ou cenários simples e sem graça. Colin nos presenteia com uma variedade de rostos e matas ricas de detalhes e repletas de belíssimos animais.

Flávio também é um mestre na narrativa gráfica. Suas escolhas de ângulos para as cenas são inspiradoras, criando momentos épicos no quadrinho. Esse trabalho com a composição de quadros salta aos olhos quando somada à sua maestria no desenho preto e branco. Colin trabalha luz e sombra como poucos.

Outro exemplo de sua maestria na narrativa gráfica são as soluções criativas que ele encontra para contar a história. Uma técnica interessante por ele aqui adotada é contar, no segundo capítulo, cenas de flashback em quadros com bordas pontilhadas.

A interessante técnica sinaliza para o leitor que aqueles quadros são especiais. O quadro, somado ao desenho e ao texto, demonstra que aquele trecho ocorre no passado da história. Assim, Colin não precisa quebrar a narrativa com um recordatório para explicar a cena ao leitor.

No projeto gráfico é onde podemos encontrar, na opinião de alguns, o único defeito da obra. O quadrinho acabou sendo impresso em papel Offset, com uma gramatura que gera um pouco de transparência. A questão do papel, no entanto, não atrapalha em nada a leitura. Devido a alta do papel no mercado, acredito que a opção escolhida aqui seja para baratear o produto.

Nesse caso, penso que toda atitude para aumentar o acesso das pessoas a obra é super bem-vinda. Isso, claro, desde que se mantenha o respeito pela integridade do material original, o que foi feito aqui.

Fora a questão do papel, a edição da Conrad está linda, com uma belíssima capa metalizada em dourado. Nos extras temos textos de Srbek com comparativos do roteiro desenhado por ele e as páginas finais de Colin. Também contém uma história colorida de 4 páginas, uma carta de Colin para Wellington e uma galeria de capas.

Estórias Gerais não é uma história difícil de ser lida. Porém, ela requer atenção. É uma leitura prazerosa, cheia de reviravoltas e com muito charme. Com apenas 20 anos de idade, está longe de ser uma história datada. Sem dúvidas, é uma obra que cresce a cada leitura. Contudo, basta apenas uma para entender porque ela é um dos maiores clássicos do quadrinho nacional.

Estórias Gerais: Edição Comemorativa de 20 Anos compila a edição original de 2001 em 176 páginas em preto e branco. Capa dura e formato 19,5 x 27,5 cm. Lançamento: Dezembro/2021

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