Review | Ficção Americana (Prime Video)

Ficção Americana ESTADUNIDENSE (já que americanos somos todos deste continente e no dia-a-dia nos chamamos de americanos, desde os “Estados Unidos do México” até a “República Federativa do Brasil”, né? Hum, não? Enfim…)

 

Um filme extraordinariamente simples tem atraído muita atenção de republicanos e democratas (ou conservadores e progressistas, quando maquiado exportado para além da capital do globo), desde a sua estreia em alguns cinemas em dezembro de 2023 até o lançamento no Prime Video nessa semana: Ficção Americana, de roteiro e direção do experiente em séries e estreante no cinema Cord Jefferson, uma versão audiovisual do livro Erasure (Apagamento), escrito por Percival Everett em 2001.

 

A história acompanha o professor universitário e escritor Thelonious “Monk” Elisson (Jeffrey Wright, O Batman), um homem negro afro-descendente preto negro, que fica indignado ao ver que, em uma livraria, as suas obras estão no setor de estudos negros e não nos dos temas dos quais elas tratam.

 

Mas, não importa onde elas estejam, elas não vendem, já que são eruditas demais e tratam de temas universais. O que vende é um livro pessimamente escrito (cheio de “ela disse”, “eu disse”, ressaltando que falas são falas) mas que ninguém liga pra isso, já que ele trata de “vivências do gueto”, que transbordam estereótipos de famílias disfuncionais em periferias na marginalidade em comunidades, como se vidas de pessoas negras se definissem unicamente de tal forma.

 

A EXALTAÇÃO DA MEDIOCRIDADE

Ironicamente, tal livro é escrito  por uma mulher pessoa que menstrua mulher negra muito bem sucedida financeiramente, que não passou por nada do que ela retrata, mas que defende ser a representatividade nece$$ária no circuito literário. A fim de tirar sarro dessa hipocrisia, Thelonious também escreve um livro, sob um pseudônimo, nos mesmos moldes mas que, para a sua surpresa, se torna um enorme sucesso.

 

Ele não lida somente com os louros morenos louros da glória de seu personagem, mas também com o falecimento da irmã, a saída do armário do irmão gay LGBTQIAPN+ gay, um problema de saúde da mãe, uma paixonite e toda a sorte de trivialidades desinteressantes a que estamos sujeitos, ou a menos a que ele, um cidadão de classe média alta, está. E eis algo interessante: Como espectadores, nós também criamos expectativa sobre uma conduta padrão que ele deveria seguir, por ser o negro que denuncia o racismo “do bem”?

AQUELE ASSUNTO QUE NÃO DEVE SER CITADO NÃO EXISTE

Apesar de indicado a 5 categorias no Oscar, como obra cinematográfica, o filme é de uma simplicidade capaz eficaz (o que não é um demérito, ainda que não seja deslumbrante): Tem uma fotografia e uma trilha sonora funcionais, atuações operantes à medida do necessário e um roteiro linear estruturado para fácil entendimento. No máximo da experimentação conceitual, o cineasta faz o protagonista interagir com as cenas que vislumbra enquanto as escreve e há uma dose de metalinguagem muito bem vinda no encerramento.

 

O que tem levantado debate é claro lógico que não é nenhum primor técnico, mas o tema do qual o filme trata mesmo. Aliás, quem dera houvesse um debate de ideias, ainda que míope raso. Lamentavelmente, na crítica especializada, se vê um triste malabarismo para não enfrentar o tabu que se tornou a toxicidade o excesso da postura politicamente correta, com receio de atrair o apoio da Ku Klux Klan de um lado e o cancelamento de ativistas atrelados ao Sleeping Giants do outro.

DO EMPODERAMENTO À LACRAÇÃO

Enquanto isso, nas redes sociais, só há exaltação do filme como reafirmação do ponto de vista da própria bolha para seus iguais, sem cogitar que, em alguma medida, Ficção Americana serve para autocrítica: à própria cadeia de produção de Hollywood, a todas, todes e todos que assistem e, inegável e principalmente, a quem só milita. Neste caso, sim, ponto para o conservador republicano, vide a abertura tão cômica quanto trágica da aluna branca estudante caucasiana branca incomodada com o professor lecionando sobre um livro que usa o termo nigga (sinto muito reproduzi-lo aqui. …Ok, eu não sinto).

 

Por mais que ele queira avançar na discussão, a palavra é muito pesada para a pobrezinha empoderada moça e ela se retira da classe. Se a aula fosse no Brasil, não é de se surpreender que o professor fosse chamado de capitão do mato por não se aliar a ela nessa tão importante luta anti racista contra a gramática.

 

Com esse tipo de humor (negro? sem trocadilhos) ácido e bastante crítico, o filme tem se popularizado. Enquanto uns enxergam interpretam somente que ele levanta a questão de que brancos delimitam espaços e discursos de minorias, outros o veem encaram como um ataque à cultura woke (lacração aqui no Brasil).

EU LACRO, ELUS LUCRAM

Woke é como chamavam a si mesmos militantes americanos acordados para injustiças. O termo remete a manifestações de 2013 no Brasil, sob o slogan “o gigante acordou”, onde questionamentos sobre incoerências sociais deixavam pessoas refletindo. Assim, assuntos eram encerrados, não havia mais o quê discutir, estavam lacrados. Com o passar dos anos e do imediatismo das redes sociais, woke e lacração ganharam conotação de imposição de ideias, sob argumento de não darem vazão a supostas imoralidades já combatidas. E cá estamos, lidando escancaradamente com a novilíngua de 1984 de George Orwell.

 

Não é preciso ser negro para se identificar com o protagonista. Quem nunca sentiu incômodo ao ser reduzido ao chavão de uma característica? Isso parte do turista tupiniquim brasileiro com camisa da seleção sorrindo amarelo ao falar de samba e futebol com gringos nativos em seus países, por mais que ele prefira outros estilos e esportes, ao gay que TEM que apoiar artistEs pelo discurso ou é visto como menos gay por isso, por quem patrulha sua individualidade sobressaindo o bem comum coletivo.

SOMOS TODOS HUMANOS (QUE NÃO NEGAM A HISTÓRIA)?

No aspecto de causar furor ao direcionar o discurso social a um campo mais ponderado equilibrado de um debate menos virtuoso e mais eficiente e, apesar dos pesares duma audiência de teimosia narcisista, talvez Ficção Americana faça jus ao status de arte a ser premiada, pelo menos por ora. Por enquanto, fica o (necessário? Já batido?) recado: Não faça pouco caso da sua amizade de minoria, mas também não a defina por isso, afinal, ela é uma pessoa e não um animal exótico de zoológico.

 

Se daqui um tempo o filme vai ser visto como motivo de orgulho a lá Faça a Coisa Certa (1989) ou de vergonha como O Nascimento de uma Nação (1915) ou só ter uma edição mais apropriada para as futuras gerações, com redublagens de frases difíceis de serem digeridas ouvidas manifestadas, só o tempo dirá. Enquanto isso, aproveite o seu privilégio de assinar um serviço de streaming e dê o play logo!

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