Barbie e o Patriarcado (com spoilers)

Barbie se tornou o evento cultural do momento graças a uma ação que uniu marketing e cinema de forma inédita. Há quem reclame da onda cor-de-rosa e do feminismo embutido em um produto que tem crianças entre seu público-alvo, mas tudo isso fazia parte da própria Barbie original, vendida como uma boneca revolucionária, a partir da qual as meninas deixavam de brincar de mamãe e passavam a se projetar como mulher. A brincadeira com 2001 – Uma Odisseia no Espaço no prólogo é divertidíssima, apesar da ação idiota de órgãos reguladores que chegaram a banir o trailer que incluía a cena por, supostamente, incitar crianças à violência. A aparição de Margot Robbie como se fosse o monólito de Stanley Kubrick mostra bem que o projeto não seria o mesmo com outra atriz no papel. Ela não apenas é a encarnação da Barbie, como é capaz de dar as camadas pedidas pelo roteiro, como sua carreira já demonstrou. Aquela versão com Amy Schurmer jamais emplacaria.
Greta Gerwig já havia feito um trabalho arriscado em Adoráveis Mulheres ao adaptar um dos romances mais queridos nos EUA, modernizando-o para o mundo atual. Ao assumir a direção de Barbie, ela novamente vai impor sua visão de mundo sobre outro mito americano. A diferença é que agora teve que ficar na corda bamba dos interesses corporativos, que obviamente colocariam um limite de até onde sua importante marca poderia ser levada. E a cineasta conseguiu equilibrar os pratos de forma admirável, conquistando público, crítica e milhões de dólares para a Mattel e Warner.
A Barbielandia é um mundo cor-de-rosa em que as meninas mandam e os meninos são meros assessórios. Uma ilusão criada para que as garotas acreditem que podem tudo, o que não acontece no mundo real do patriarcado. O choque de realidades faz Barbie conhecer seu efeito em mulheres reais e Ken (Ryan Gosling, ótimo em não deixar o personagem cair demais no ridículo) levar a machocracia para seu universo pink. É interessante como as demais Barbies rapidamente se convertem em fêmeas submissas, como se o gene da namorada ideal (para os homens) já estivesse nelas, Mas Greta para nisso. A Barbie estereotípica retorna ao seu mundo e o vê transformado num pesadelo de testosterona, mas com a ajuda das moças reais, Gloria (America Ferrara, a Betty, a Feia americana) e Sacha (Adriana Greenblatt, de Amor e Monstros da Netflix) ela descobre como reverter a Kenlandia.
Um dos grandes acertos da produção é a escalação do elenco. Já disse que sem Margot Robbie, a mágica não aconteceria e que Ryan Gosling dosou sua atuação para evitar uma caricatura exagerada, mas não podemos esquecer America carregando o background de seu papel mais famoso e Michael Cera, o pai involuntário de Juno e o Scott Pilgrim contra o Mundo, que é o próprio Allan, o boneco acessório de Ken.
Outra escolha interessante em princípio é a cara do núcleo mais aleatório e desnecessário do filme. Will Ferrell parece ser uma versão sênior do Duende em Nova York, mas seu CEO da Mattel, assim como toda a participação da empresa, não apenas é desnecessária como sem função. Afinal, porque Barbie ameaçava a empresa e o que eles pretendiam ao encaixotá-la? Provavelmente tudo foi uma desculpa para introduzir o fantasma Ruth Handler (Rhea Pearlman, comediante veterana famosa por Cheers), a criadora da Barbie, que acaba virando uma fada azul do Pinóquio para a personagem de Margot, cuja trajetória até então é uma jornada para virar uma mulher de verdade. Isso implica não apenas em visitas regulares ao ginecologista, como viver o patriarcado – ou falocracia, já que o arremedo criado por Ken não incluía o sexo (por motivos óbvios) – com todas suas implicações reais, não apenas alegóricas.
Como todo sucesso não fica impune, o CEO da Mattel (o real, não Will Farrell) já sonha com uma sequência ou spin offs, dos quais Greta Gerwig já se esquivou, uma vez que assumiu o reboot de Crônicas de Nárnia, o que vai deixa-la ocupada por alguns anos. Também não vejo Margot Robbie embarcando numa continuação sem a diretora, nem Ryan Gosling estrelando um filme do Ken. Mas, lembremos de Coringa e seu um bilhão de bilheteria. Nem o diretor Todd Philips nem o astro Joaquin Phoenix estavam muito animados com uma continuação, mas a força da grana falou mais alto. Vai que, a exemplo de O Poderoso Chefão (uma das referências masculinas do roteiro), uma “proposta irrecusável” seja colocada na mesa. A essa altura do hype, citando o filme Oppenheimer em relação à bomba atômica: “se é possível, é inevitável”.

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