Review | Infiltrado na Klan

Grande representante da contracultura ainda no final da década de 1980, o cineasta Spike Lee se tornou um dos mais emblemáticos representantes do cinema social e racial dos EUA. Seu cinema marginal saído dos guetos acabou ganhando importância e visibilidade quando em 1989 lançou Faça a Coisa Certa, seu filme mais lembrado, que ainda permanece como o grande marco reflexivo sobre temas ainda relevantes e atuais.

Quase trinta anos separam Faça a Coisa Certa de Infiltrado na Klan, um indicativo de que as questões raciais pouco foram discutidas ou resolvidas nas últimas décadas, sinal de que ainda existem muitas coisas erradas que precisam ser expostas em busca de uma solução. Spike Lee, depois de anos sem tocar de forma contundente na ferida que assola a sociedade e principalmente os americanos, está de volta ao mainstream do cinema fazendo aquilo que sempre fez de melhor: denunciar de forma bem indigesta todo o racismo existente.

Grande contador de histórias, Lee foi buscar no livro de Ron Stallworth o material perfeito para voltar a discutir algumas questões que nunca deveriam sair das rodas de conversa. Sua narrativa consegue entrelaçar diversos gêneros de forma bem exímia, extraindo um tipo de humor bem desconfortável, que gera risadas nervosas ao mesmo tempo em que enfia mais o dedo na ferida.

A farsa criada por Lee apresenta a inacreditável história real de Ron Stallworth (John David Washington), policial negro, que nos anos 1970 conseguiu com sucesso se infiltrar na Ku Kluk Klan e sabotá-la. Sendo o único policial negro de um distrito policial, ele efetuou longas trocas telefônicas com o líder do grupo racista David Duke (Topher Grace), ganhando sua confiança. O plano depois seguiu com o treinamento do policial Flip Zimmerman (Adam Driver), branco e judeu que compareceu às reuniões presenciais da organização. A dupla conseguiu evitar diversos crimes de ódio e expor supremacistas brancos nas forças armadas.

Spike Lee foge do drama biográfico, não que o diretor desmereça ou queira esconder alguns fatos, pelo contrário. Nomes, locais, e os acontecimentos mais importantes estão todos presentes. O maior mérito do filme é sabe rir de si mesmo, contemplando todos os absurdos da narrativa.

Spike Lee demonstra estar em ótima forma em Infiltrado na Klan. Consegue entregar um conteúdo bastante questionador, cheio de provocações, deixando o público sempre desconfortável e até mesmo perturbado. A forma intensa com que o diretor reflete sobre a história mostra que ainda existem muitas questões que precisam ser reforçadas e estão longe de serem extintas.

O paralelo com os dias atuais mostrados no fim do filme engrossam o discurso racista velado que ainda existe, e que se tornaram mais acirrados após a eleição de Donald Trump à presidência. As imagens dos confrontos em Charlotesville, em 2017, ilustram todo o ódio que ainda permeiam a sociedade, e o discurso cada vez mais intolerante de líderes mundiais parece ser a desculpa necessária para que se cometam cada vez mais crimes.

O filme faz uma conexão precisa com a atualidade, expondo a ascensão de ideias absurdas, presentes no discurso de líderes como Trump, que acabam sendo replicadas por outros lideres, defensores de suas crenças pessoais, que questionam cada vez mais a história vivida até aqui. São anos de lutas com pouco progresso, mesmo depois de tantas décadas.

Com um visual caprichado, a produção conta com um elenco bem inspirado. John David Washington – filho de Denzel Washington – desde a primeira cena, ostentando um provocador penteado black power, é a personificação perfeita do cinismo e ousadia que seu personagem precisa. Seguem-se igualmente bem Adam Driver – num personagem judeu que começa a fazer alguns questionamentos também importantes – Topher Grace como o líder da Klan e seus fanáticos Jasper Paakkonen e Ryan Eggold.

Mas o que já valeria o valor do ingresso é a lendária presença do cantor, ator e ícone do ativismo social Harry Belafonte, amigo de Martin Luther King, e um dos organizadores da Marcha sobre Washington (1963). Belafonte, aos 91 anos, é a representação da força de uma vida dedicada à luta pelos direitos civis. Sua participação é emblemática e contribui muito para a importância desse filme.

Se fosse comandado por outra pessoa, Infiltrado na Klan seria outro tipo de filme. Sob o comando de Spike Lee, o passado continua bastante presente e se conecta de forma bem desconcertante. A mensagem é direta e não esconde para quem está sendo direcionada. Em tempos de intolerância e medo, o filme cumpre o seu papel, revelando toda a urgência em seu tema. Lee pode até amenizar as coisas, mas não desrespeita em momento algum a contundência da história.

Infiltrado na Klan é necessário, por mais cruel que seja. É a voz de seu diretor voltando a ganhar força para engrossar uma lista de nomes que lutaram e ainda lutam pelo simples fato de existirem. Afinal todas as vidas importam.

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