Review | Titanic

Foi há… 25 anos. E ainda sinto o cheiro fresco do cinema… Recordes foram quebrados, a crítica ficou deslumbrada, muitos prêmios foram conquistados. Titanic era chamado de filme fenômeno. E era, realmente era. Embarquemos novamente no navio dos sonhos para desbravar o porquê dessa megaprodução épica funcionar tão bem com tão variado público.

Situar o filme em um presente atemporal (poeticamente, ainda que matematicamente preciso) e partir daí para o passado histórico, sob um ponto de vista que revela aos poucos um outro mundo, é um de seus trunfos.

Dessa forma, o filme instiga a curiosidade do público, ávido por conhecer o navio e seus passageiros. Não basta a viagem no transatlântico: é preciso a sensação de descoberta, viajando para outra época, de outros hábitos.

A JORNADA DA HEROÍNA

Dando um toque pessoal, o diretor James Cameron (O Exterminador do Futuro) retrata, de modo figurado, a própria expedição submarina. Fictícios caçadores de tesouros estão em busca do Coração do Oceano (diamante de 56 quilates que teria pertencido a Luís XVI e sido lapidado em forma de coração na Revolução Francesa), submerso nos destroços do (real) navio Titanic.

Liderada por Brock Lovett (Bill Paxton, de Apollo 13, que faleceu em 2017), a equipe encontra apenas o desenho de uma mulher utilizando o diamante lendário.

Rose (Gloria Stuart de O Homem Invisível, que faleceu em 2010), uma senhora de 101 anos de idade, assiste na televisão a uma reportagem sobre tal empreitada, se reconhece no retrato de outrora e desperta para uma missão: dar pistas àquele pessoal sobre o paradeiro da joia. Sim, Titanic têm elementos da Jornada do Herói, de Joseph Campbell.

Apesar do roteiro original ter sido reconhecido somente com uma indicação ao Globo de Ouro, é muito bem estruturado nos detalhes e amarra a narrativa a todo instante com dicas e recompensas do que é contado. Tudo é exaltado pela fotografia muito bem trabalhada e pela trilha sonora magistralmente executada.

A união perfeita desses principais componentes (o que se vê, o que se ouve e o que é contado) confere a força estrondosa desse filme.

UMA GRANDE AVENTURA

Há uma atmosfera de aventura bastante certeira e que aumenta exponencialmente enquanto Rose vai relembrando a sua história para uma plateia interessada. Esse tom se dá graças ao diretor de fotografia Russell Carpenter (A Chave Mágica) apresentar o navio em toda sua magnitude, filmado de diversos ângulos possíveis, sempre com luzes levemente amareladas, de modo vívido e bastante acolhedor.

E mais ainda por James Horner (Coração Valente) conduzir os instrumentos musicais de forma que remetam ao maquinário do navio, envolto por um clima etéreo, com vozes angelicais de um doce coral. Tudo isso acaba causando o efeito de um sonho se materializando.

Assim, o público que assiste ao filme é fisgado de vez pelo clima festivo e nem sequer pondera que, em pouco tempo, aquela maravilha toda vai se tornar o horrível destino da expedição do início dessa história, lá no fundo do oceano.

Nem o olhar mais apurado desconfia da réplica em tamanho real numa espécie de piscina gigante construída numa praia mexicana, mérito do diretor de arte Peter Lamont (007 – Do 3º ao 21º da franquia). Hipnotizado pelos sons e imagens, se pudesse, todo espectador adentraria o navio naquele momento sem pestanejar.

No mínimo, daria tudo para estar entre a multidão eufórica no porto, presenciando o grande poder da engenharia moderna, com a concepção do maior navio do mundo.

O ELENCO DE ESTRELAS

Nesse porto, já se vê que os destaques dados à figuração e ao elenco de apoio vão auxiliar na credibilidade das cenas. Até a garotinha Cora (Alex Owens-Sarno) causa interesse, quando repara em carros se aproximando. De um deles sai a versão 84 anos mais jovem de Rose (Kate Winslet, de Razão e Sensibilidade). Ela tem uma das mais célebres entradas de divas do cinema num filme, tendo uma câmera com vista superior de seu chapéu descendo prontamente para revelar a expressão firme de sua bela face e seu terninho de alfaiataria com toque masculino, já expressando ali mesmo uma personalidade resistente à imposição de convenções sociais.

Nessa cena também, com sutileza, se revelam nuances de seu noivo milionário Caledon (Cal) Hockley (Billy Zane, de O Fantasma) e sua mãe viúva Ruth DeWitt Bukater (Frances Fisher, de Os Imperdoáveis). É deles que irrompem as memoráveis frases “Esse é o navio que não afunda” e “Nem Deus pode afundar o Titanic”. Qualquer figura literária que se mostra em oposição a forças divinas e da natureza, tradicionalmente personifica a vilania. Eis, portanto, um alerta contra esses dois.

Perto dali, dois jovens rapazes ganham passagens do Titanic através de um jogo de baralho: Fabrizio (Danny Nucci, de A Rocha) e o gracioso Jack Dawson (Leonardo DiCaprio, de Romeu e Julieta). Para eles a vida é uma diversão e a grandiosidade do navio (ainda) não os oprime. Isso até eles serem sinalizados constantemente sobre por quais áreas podem circular, tanto por funcionários quanto por seus novos amigos irlandeses, conterrâneos da barcaça.

A METÁFORA DA LUTA DE CLASSES

Desse modo, está muito bem colocada a metáfora da dinâmica social que vivemos até hoje, em meio a uma gritante desigualdade, com o núcleo dos ricos e o dos pobres se alternando, escancarando suas diferenças de estilo de vida e a forma como são tratados pela tripulação.

Enquanto a 3ª classe lida com o aperto de instalações náuticas básicas, em metal, a 1ª classe ostenta amplos espaços decorados tais quais o Palácio de Versalhes, com painéis de carvalho, estátuas renascentistas, lustres eduardianos, papéis de parede e carpetes fabulosos. Tudo reconstituído com louvor pelo decorador de set Michael D. Ford (Indiana Jones).

Mas riqueza material não tem valor quando em posse de pessoas rasas e mesquinhas. Hockley logo se revela um controlador obsessivo que desdenha das artes de Picasso e Monet, que sua noiva tanto admira. Ruth é uma megera que negocia a filha num casamento forçado e não enxerga os benefícios duma Universidade. Ainda há o soberbo diretor da White Star Line, Bruce Ismay (Jonathan Hyde, de Jumanji), que desconhece Freud, o pai da psicanálise.

O magnata faz parte do grupo de pessoas reais retratadas, junto ao construtor do navio Thomas Andrews (Victor Garber, de Legalmente Loira), do Capitão Smith (Bernard Hill, de O Senhor dos Anéis 2 e 3) e da irreverente Molly Brown (Kathy Bates, de Tomates Verdes Fritos).

É um acerto que a parada na França, onde Molly embarca, tenha sido só citada rapidamente, sem aprofundamento. O ritmo fluido do filme seria quebrado e a cena do porto perderia impacto, se fosse o oposto. E na realidade o Titanic parou ainda mais uma vez, na Irlanda, para só então seguir finalmente rumo à América.

O MENTOR ARTISTA

Cruzando o Atlântico se descobre o talento de Jack enquanto artista. Ele desenha pessoas sem que elas percebam. Visto o que já foi mostrado até agora, é confirmado por esse ponto da narrativa que os protagonistas vão acabar desenvolvendo interesse um pelo outro e vão gerar atrito com seu antagonista.

Para a alegria de uns e fúria de outros, seus caminhos se cruzam e a aventura cede espaço ao romance. Eles quase sempre dividem o mesmo plano filmado. Logo, só se quer vê-los juntos. Rose se sente bem à vontade com Jack, lhe revelando seus anseios mais profundos. Ele a impulsiona a ser como ela quiser, ao contrário de Cal, que a persegue, a coíbe e tenta suborná-la (ironicamente até com um coração, mas num pingente brilhante, o único que é capaz de fornecer).

Ainda que DiCaprio tenha sua atuação celebrada apenas pela indicação ao Globo de Ouro, ele e Winslet têm uma excelente conexão. A atriz britânica convence muito bem com o sotaque americano e uma rebeldia comedida, mais típica do fim do que do início do século XX, gerando empatia no público atual.

Ela e sua versão idosa foram merecidamente agraciadas com a indicação ao Oscar. Tão dignas de nota quanto, são as interpretações de Fisher e Zane, com suas respirações contidas, sobrancelhas arqueadas e olhares fulminantes.

O DESENVOLVIMENTO DO ROMANCE

À medida que Rose e Jack vão se entregando ao amor, as cores na tela vão se tornando tão quentes quanto sua paixão prestes a explodir. Os violinos e o coro de antes vão sendo mudados pelos sons de uma flauta, uma gaita de fole e a suavidade da voz norueguesa de Sissel Kyrkjebo (bem ao estilo irlandês da cantora Enya). Há até mesmo um enquadramento emblemático de um cupido entre ambos, na grande escadaria principal, contribuindo para a imagética construída.

Na companhia de Jack, o cabelo antes preso de Rose vai se soltando e os vestidos de seda acetinada vão sendo substituídos pela leveza esvoaçante de um tecido musseline. Ela até se sente livre para usar lavanda, cor que sua mãe declaradamente detesta. Uma composição de figurino muito bem planejada pela designer Deborah Lynn Scott (E.T. o Extraterrestre).

Enquanto o casal se beija na proa do navio, a edição começa a relembrar aqueles que veem a cena de forma encantada que um destino trágico se aproxima, transformando o barco suntuoso do passado nas ruínas do presente embaixo d’água. É uma transição de panorama sepulcral digna de filme de terror.

O romance segue com muita veracidade e pureza, mesmo diante duma imagem de nudez. Há nesse instante um silêncio embaraçoso, visto o respeito que um tem pelo outro. Os closes nos seus olhares mostram admiração e zelo mútuos na entrega ao que estão vivendo, enquanto a moça é desenhada pelo companheiro, usando o fatídico Coração do Oceano.

O SIMBOLISMO DA MORTE

Mal sabe ela que um dia irá valorizar o diamante que usa como a conexão com esse momento. E mais do que isso, o desenho feito vai lhe conferir importância maior do que a joia. Esse é um momento tão delicado e icônico quanto a insinuada cena de sexo logo em seguida, onde uma mão escorre pelo vidro embaçado de um carro. Nada nunca é dispensável e vulgar. Tudo é sempre muito elegante e bonito de ver.

Outro beijo é interrompido. Dessa vez pelo impacto do Titanic contra um iceberg (a 41km/h, cinco dias após o início da jornada na Inglaterra). A iluminação alaranjada começa então a esfriar para tons azulados. Há outro aviso simbólico de que aquele acidente vai separar essas pessoas.

Tal simbolismo avança quando Jack e Rose se despedem, ao lado de uma família, com os homens no navio vendo as mulheres partindo em um bote salva-vidas (até que Rose pula de volta para os braços do amado).

Sozinha, essa família não causaria a mesma comoção. Com o casal principal passando pelo mesmo, o público sofre também por ela, mas através dele. Seguindo essa lógica, entende-se que um dos dois deve representar, portanto, a morte de todos os afogados. Somente assim a dor pela qual cada uma daquelas pessoas passou será sentida diretamente pelos espectadores. Caso contrário, o filme não encontraria a sua razão de existência.

ESPETÁCULO DE AÇÃO COM UMA DOSE DE HORROR

Mas o naufrágio não é retratado como um martírio insuportável. A trilha sonora intercala a sensação de tristeza com um tom de urgência, causando horror, mas também expectativa de salvamento, em um bom ritmo de ação. Nessa luta por sobrevivência, há até pitadas de humor partindo de Jack e seus amigos.

O infortúnio é acentuado mais pelo desespero das outras pessoas aterrorizadas e pelos ambientes sucumbindo à água sem fim, de forma espetacular. Destruir toda aquela obra de arte (cenários) em nome duma outra arte (o filme) deve ter sido um deleite para a equipe de efeitos especiais de Robert Legato (Entrevista com o Vampiro), em bons tempos que a computação gráfica só dava um polimento aos efeitos práticos, em vez de fazer o serviço completo.

É revoltante, por outro lado, testemunhar o despreparo da equipe do navio para lidar com a calamidade instaurada. Toda a pompa da 1ª classe se converte num ignorante egocentrismo, estimulado pela manutenção burocrática dos bons modos em momento mais inoportuno impossível. Ainda bem que há exceções, como o Oficial Lowe (Ioan Gruffudd, de Quarteto Fantástico), numa postura digna, destacada entre a erupção de corrupção de seus colegas.

A baixa temperatura da água propicia visuais que flertam de novo com o horror, àqueles que padecem na superfície. É um trabalho de maquiagem e penteado excepcional de Greg Cannom (Drácula de Bram Stoker), digno de sua indicação ao Oscar. Os sons também contribuem bastante para climatizar tais cenas, comprovando a eficácia de Gary Rydstrom (Jurassic Park) e Tom Bellfort (Star Wars: Episódio I).

FÁBULA MODERNA

Jack conduz Rose à salvação de imediato como um herói e a longo prazo, como um mentor, da mediocridade a que ela estava fadada. Não à toa, a música dos créditos finais, magnificamente interpretada por Celine Dion, expressa sentimentos pelo rapaz: “Você está aqui, não há nada que eu tema”. E a caçada ao tesouro resulta no aprendizado da valorização de conexões pessoais e de viver a vida como se acredita que deve ser vivida, afinal, a qualquer hora ela pode ser interrompida.

Sabe-se que, quatro dias depois, 40 mil pessoas aguardavam no cais a chegada do navio que havia resgatado os 710 sobreviventes do naufrágio (1.514 haviam morrido). Processos foram abertos contra a empresa, homenagens às vítimas foram prestadas, mudanças nas leis de segurança marítima foram feitas…

Mas, novamente, mesmo isso sendo histórica e socialmente relevante, não é algo que serve ao produto cinematográfico final. Com muito bom senso e impecabilidade do que manter e o que podar, James Cameron constrói seu Titanic.

LEGADO DE SUCESSO

E é assim que o diretor convence estúdios a lhe cederem o maior orçamento para um filme (até então), assim que se conquista a atenção e adoração do público, angariando uma bilheteria inicial de US$ 1,8 bilhão e assim que se finca um clássico na história do cinema.

Dentre as diversas premiações da imprensa, críticos, sindicatos e festivais, destacam-se os 14 Oscars a que o filme foi indicado e suas vitórias em 11 categorias, incluindo a principal. Ele foi o responsável pela maior audiência já registrada da cerimônia.

Até mesmo quando transmitido pela primeira vez na Rede Globo, três anos após sua estreia oficial nos cinemas, em dezembro de 1997, o Ibope marcou um recorde que permanece imbatível.

Titanic entrou em cartaz no Brasil um pouco depois dos EUA, no dia 16 de janeiro de 1998. Voltou à exibição mundial em abril de 2012 (rememorando o centenário do navio), numa maravilhosa conversão para 3D e arrecadou mais US$340 Milhões.

Agora celebra seus 25 anos, de novo nos cinemas, remasterizado em uma fascinante resolução 4K HDR que deve ser apreciada por todo, seja em seu primeiro ou centésimo contato com a obra. Afinal, em tempos de relações líquidas, faz bem escapar para outra realidade e deixar o coração suspirar.

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