Reviews | Cobertura da 43ª Mostra de São Paulo

A 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo aconteceu na capital paulista de 17 a 31 de outubro e foi conferida pelo colaborador Angelo Cordeiro em nossa segunda presença no festival que também vai ao litoral e ao interior por meio de itinerância em parceria com o Sesc.

Confira a cobertura da 42ª Mostra de SP aqui  e aqui.

Segue abaixo os reviews dos principais filmes conferidos durante as duas semanas de outubro.

Até Logo, Meu Filho (dir. Wang Xiaoshuai) – Nota 10,0

Vencedor dos prêmios de melhor ator e atriz no Festival de Berlim, Até Logo, Meu Filho acompanha a vida de duas famílias ao longo de 30 anos de mudanças políticas e sociais na China. Após a morte trágica de uma criança em um acidente, os caminhos dos personagens se separam – os destinos divergem e fluem, transformados pelo impacto das mudanças no país. Apesar das diferenças entre as famílias, há uma busca comum pela verdade e pela reconciliação.

Como num típico melodrama, Wang Xiaoshuai transforma uma brincadeira de criança em tragédia já no início. Sem rodeios somos apresentados à dor que irá assolar aquelas famílias, mal temos tempo de nos envolver com aquelas personagens, mal sabemos seus nomes, quem são seus pais, como se deram suas criações até ali, por isso, o que vem a seguir serão horas e décadas de um luto doloroso que acompanhará aquelas pessoas até o fim de seus dias. Uma ferida que parece nunca cicatrizar e que acaba separando amigos de uma vida.

É curioso como, mesmo em se tratando de um melodrama, Xiaoshuai não nos força ao choro. Os momentos de drama mais intenso podem e devem emocionar os mais emotivos, mas a câmera de Xiaoshuai permanece distante das cenas mais pesadas – como a tragédia do início. Ele nos poupa até o terceiro ato, catártico, no qual é impossível não sentirmos as angústias de toda uma vida serem despejadas dos ombros dos personagens (e das nossas bolsas de lágrimas).

Xiaoshuai exige atenção do espectador. Os diálogos não são didáticos, a mise-en-scène as elipses e a própria China falam por si. O roteiro segue uma narrativa não-linear pela qual presenciamos os primeiros encontros, segredos, traições, os laços sendo firmados, enfim, testemunhamos tudo o que transforma amizade em amizade e amor em amor e vamos nos sufocando a ponto de ficarmos com um nó na garganta a cada nova revelação melodramática de ares nada novelescos. Xiaoshuai desenvolve estes laços com naturalidade e sem pressa alguma, do mesmo modo que os finaliza num terceiro ato que enfim cura as feridas de uma vida. Finalmente, o choro é livre.

 

Sinônimos (dir. Nadav Lapid) – Nota 9,0

Simplesmente genial a forma com que o diretor Nadav Lapid nos apresenta a Yoav e suas intenções numa França, a ele, progressista e completamente diferente de sua terra natal, Israel.

Sem facilitar nada para o espectador – ora, e Yoav tem vida fácil? – somos jogados num emaranhado de situações que satirizam, criticam e ridicularizam a realidade de um país que em seu próprio hino canta contra o sangue dos “impuros”. Impuros como Yoav, que saem de seus países dominados por guerras, violência, estupro de mulheres, assassinatos político e religiosos em busca de uma porta aberta em um país multiétnico que é a França. Doce ilusão.

Como citei, nada é facilitado para Yoav, o galo dos franceses, alimentado de migalhas e jogado nesta rinha em busca de dignidade e de se encontrar enquanto é explorado pelo jovem casal Emile e Caroline, seja mental ou fisicamente.

Tom Mercier, intérprete de Yoav, preenche a tela com seus trejeitos, articulações e expressões corporais, um entusiasta completo em seu sobretudo amarelo. A princípio lhe brilha aos olhos a oportunidade de se desfazer de uma nacionalidade e assumir outra, porém, aos poucos, as porradas começam a surgir. Uma das coisas intrínsecas ao ser humano é justamente este laço étnico-cultural, impossível de ser rasgado de nossa personalidade como se fosse a página de um livro.

Pode-se dizer que Sinônimos soa como o The Square deste ano. Gritante, raivoso, cômico e polêmico. Um retrato imagético de sua premissa inteligentemente articulada. Um deleite em suas camadas e uma mensagem que nos sacode do início ao fim. Seja pelo trabalho de câmera, trêmula quando precisa ser, ou pela correria de Yoav. E com tanto a ser pensado e digerido sobre esta Europa que bate a porta na cara destes intrusos, o pós-sessão será intensamente proveitoso.

Merecidíssimo o prêmio de Urso de Ouro no Festival de Berlim.

 

O Jovem Ahmed (dir. Jean-Pierre e Luc Dardenne) – Nota 9,0

O cinema dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne costumeiramente se apropria de personagens de personalidade forte para tratar de questões sociais relevantes e emergentes, aqui, o perigo do fanatismo religioso que, pra piorar a situação, é praticado por um garoto de 13 anos.

A excentricidade e problemática de uma criança adepta do islamismo radical vai ganhando ares preocupantes. Ahmed não aperta a mão da professora, pois “muçulmanos de verdade não fazem isso” e chega a insultar a mãe em uma discussão, parece faltar pouco para que ele apele para a violência física. Ahmed tem no primo – um extremista que se matou em um atentado terrorista – a figura de um mártir, e vai sendo influenciado por seu guia espiritual a bater de frente com as ideias apóstatas da professora: ela quer ensinar árabe aos jovens por meio de músicas modernas e não pela leitura do Livro Sagrado, algo que vai contra as tradições do Islã. Ahmed encontra uma única solução: matar a professora.

Outra prática dos Dardenne é acompanharmos seus protagonistas do início ao fim, em longos planos e movimentos bruscos de câmera, com isso, estamos sempre próximos e íntimos de Ahmed, seja rezando, fazendo sua higiene bucal ou maquinando seu ataque contra a professora, desta forma, vamos nos desafeiçoando cada vez mais de sua imagem – graças também à ótima atuação de Idir Ben Addi, odioso e cínico na medida certa -, mas também é possível entender sua cabeça – ainda em formação – manipulada por uma figura de pensamento conservador e atitudes radicais que têm olhos e ouvidos para as frustrações do garoto, por isso, não é a toa que Ahmed se aproxima tanto do imã, por mais que o mundo ao redor (família, pais de amigos) se mostre progressista e de cabeça aberta, é no imã e na prática da religião que Ahmed encontra a oportunidade de se ver dono de si.

Devido a sua atitude extrema, Ahmed vai para um programa de ressocialização juvenil onde conhece a jovem Louise. Ela não é muçulmana, mas aos poucos a relação entre ambos vai despertando sensações em Ahmed. Os Dardenne, então, nos propõem um estudo de personagem curioso. Ahmed estaria disposto a mudar seu pensamento? O final é claro na resposta.

Com este O Jovem Ahmed, os irmãos Dardenne mostram porque venceram pela 5ª vez na carreira um prêmio no Festival de Cannes – o primeiro como diretores, eles já haviam levado duas vezes o prêmio maior do festival: a Palma de Ouro, com Rosetta em 1999 e A Criança, em 2005. O controle das cenas, dos personagens, das situações, da tensão crescente e, principalmente, dos detalhes (a arma do crime se torna sua salvação) deixam claro – com detalhes em azul e vermelho – que os diretores belgas estão mais em forma do que nunca.

 

Honeyland (dir. Ljubomir Stefanov e Tamara Kotevska) – Nota 8,0

Dizem que se um dia as abelhas deixarem de existir a humanidade sofrerá um colapso e também irá correr sérios riscos acerca de sua existência.

Para a apicultora Hatidze isso é levado ao pé da letra, ela vive junto da mãe em uma região isolada nas montanhas na Macedônia do Norte onde cria abelhas para que elas lhe forneçam o mel que ela irá revender no “mercadão” da cidade mais próxima.

Acompanhamos por um bom tempo a gentil relação entre natureza e Hatidze, assim como o carinho dela com a mãe, acamada em casa. Há uma grande virada quando turcos chegam para uma temporada na região. O patriarca da família também é apicultor, mas logo nota-se que não há o mesmo carinho em sua relação com a natureza, relação desrespeitosa passada para seus filhos que maltratam o gado e são atacados pelas abelhas, coisa que não acontece com a já experiente Hatidze.

Por mais que seja um documentário disposto a acompanhar esta relação homem-natureza, ou melhor, mulher-natureza, Honeyland segue uma linha narrativa de uma ficção. Não há depoimentos para a câmera, não há narrações em off, nem colagens ou imagens de arquivo, coisas comuns aos documentários. A dupla de diretores Ljubomir Stefanov e Tamara Kotevska filmaram Hatidze, sua mãe e os vizinhos indesejados num período de 3 anos e num dos melhores trabalhos de montagem do ano fizeram um filme essencial para os apaixonados por cinema e natureza.

 

Oleg (dir. Juris Kursietis) – Nota 8,0

Esta co-produção entre Letônia, Lituânia, Bélgica e França conta a dura e fria história do personagem título. Nascido na Letônia, Oleg se refugiou na Bélgica onde trabalha como açougueiro – é o que ele sabe fazer. Após um grave acidente no frigorífico, Oleg perde o emprego e se vê desamparado em um país no qual não domina a língua, não pode trabalhar em qualquer posto e acaba se envolvendo com pessoas de má índole para ter onde dormir, o que comer e tirar algum sustento.

Em plena época de crise migratória e de refugiados na Europa, o longa do estreante Juris Kursietis consegue emocionar e aterrorizar na mesma medida graças à forma com que constrói suas metáforas e nos envolve em sua narrativa realista. O isolamento de Oleg é explorado por uma câmera sufocante sempre próxima ao personagem e também por meio de longos planos que dão um exímio tom naturalista nas interações entre o elenco que está todo muito bem. As sequências em que Oleg vaga pelas ruas da capital belga tentando conseguir qualquer tipo de emprego ou se alimentando do que encontra em uma festa são de cortar o coração.

O filme toma ares de thriller quando Oleg consegue trabalho com um criminoso polonês que o acolhe em sua casa, claramente as intenções do anfitrião não são as melhores e Oleg passa por momentos de pressão psicológica extenuantes que vão cada vez mais lhe tirando as esperanças de um dia enfim encontrar sua salvação e não ser mais sacrificado.

 

O Que Arde (dir. Olivier Laxe) – Nota 8,0

A cena de abertura desta co-produção entre França, Luxemburgo e Espanha é intrigante, assustadora e grandiosa. Aos poucos a tela escura vai sendo iluminada por uma luz amarelada, uma floresta se revela e o som de troncos se quebrando vai tomando conta da sala de cinema, as árvores vão sendo derrubadas por um trator, um desmatamento acontece. Quem estaria fazendo aquilo?

Na cena seguinte, um calhamaço nas mãos da polícia é apresentado como o processo de um tal de Amador Coro, um piromaníaco que acabara de sair da prisão. Amador volta à sua cidade natal, uma pequena vila nas montanhas da Galícia, para morar com a mãe e três vacas. O cotidiano se arrasta, acompanhando o ritmo da natureza. Até que, em uma noite, um incêndio começa a devastar a região.

O diretor Oliver Laxe filma o dia-a-dia de Amador e sua mãe Benedicta como se estivesse filmando um documentário sobre ambos – até me lembrei do recente Honeyland, também conferido na Mostra. Seu vislumbre com a rotina de mãe e filho realizando atividades triviais de uma zona rural nos transporta para o ar bucólico das montanhas. Começamos a duvidar que aquele homem pacato seja mesmo um criminoso incendiário. Ficamos o tempo todo esperando Amador atear fogo em alguma coisa, até alguns vizinhos praticam bullying com ele: “ei Amador, tem fogo aí?”. Se não fosse pelo documento apresentado no início, poderíamos colocar a mão no fogo para defendê-lo.

Nesse jogo de aparências e incertezas onde apenas a natureza se mostra confiável, Laxe faz de O Que Arde pura poesia visual e sonora graças ao apuro estético com que filma sequências belíssimas de incêndio e destruição da natureza provocados por um homem simples que não conseguimos odiar.

 

Deus É Mulher e seu Nome É Petúnia (dir. Teona Strugar Mitevska) – Nota 8,0

A história desta co-produção entre Macedônia do Norte, Bélgica, Eslovênia, Croácia e França se passa em Stip, uma cidadezinha na Macedônia, onde todo mês de janeiro o padre local joga uma cruz de madeira no rio e centenas de homens mergulham atrás dela. Sorte e prosperidade são garantidas a quem a recupera. Desta vez, Petúnia (Zorica Nusheva) mergulha na água e consegue pegar a cruz antes dos outros. Seus concorrentes ficam furiosos e a situação sai do controle.

Poucas vezes um título sintetizou tanto a ideia de um filme. Ao mesmo tempo que afirma-se a existência de um Deus, desvincula-se sua imagem do ser divino que rege o mundo numa visão masculinizada. Petúnia, ao “roubar” a cruz – como a acusam – obtém o poder de um símbolo cristão em mãos, algo tão sagrado para a Igreja e para aquela comunidade.

Em casa, Petúnia não tem poder algum, aliás, sequer o tem aos olhos do pequeno vilarejo onde vive. Ela tem 32 anos, está desempregada – quando vai a uma entrevista é assediada -, é solteira e sua aparência é considerada feia, coisa que a própria mãe faz questão de declarar: “coloque uma roupa”, eis que a filha responde: “eu saí da sua vagina, sou tão feia assim?”. O longa da diretora Teona Strugar Mitevska poderia facilmente martirizar a figura de Petúnia, colocando-a no centro deste apedrejamento sob o jugo da Igreja, de sua mãe conservadora – acompanhada de vários vizinhos – e a polícia, todos configurando essa sociedade machista e patriarcal onde a laicidade não existe.

Porém, Petúnia não é nada permissiva – e ainda ganha a ajuda de uma repórter para expor os abusos aos quais é submetida. A partir do momento em que tem a cruz em mãos Petúnia é relutante e segue até o fim com sua postura, disparando contra padres, policiais e a própria mãe. Aos homens que competiam seu feito é um absurdo: “é uma tradição, mulheres não podem participar”. Mitevska não vilaniza o outro lado, até mesmo na delegacia onde Petúnia é mantida alguns policiais concordam que ela não fez nada de errado, não há leis contra sua atitude e então todos se apegam apenas à máxima cristã de que ela está em posse de um objeto sagrado, ferindo a tradição.

É assim, abalando as estruturas daquela comunidade, que Petúnia deixa claro que as leis vigentes naquela sociedade não-laica não passam de dogmas baseados em tradições onde a mulher – ainda mais feia, sem religião e solteira – não tem vez. Para o azar deles, ela estava disposta a quebrar todos aqueles velhos conceitos.

 

Papicha (dir. Mounia Meddour Gens) – Nota 8,0

Ano passado assisti a Cafarnaum na mesma sala em que assisti a Papicha este ano. Semelhanças que a Mostra reserva, e elas não param por aí. Ambos são dirigidos por mulheres e ambos têm jovens como protagonistas, enquanto Cafarnaum olhava para o futuro com desesperança, Papicha nos leva de volta à década de 90, também desesperançosa para um grupo de garotas e toda uma sociedade.

Nedjma (Lyna Khoudri) é uma jovem estudante fã de moda que passa a vivenciar o impacto do extremismo islâmico e da intolerância religiosa na Argélia dos anos 90. Grupos terroristas passam a exigir que as mulheres usem hijabs, a liberdade feminina é ameaçada, mulheres devem se esconder embaixo de véus e dentro de casa. Incomodada com a situação e com as sequentes repressões, Nedjma decide se reunir com as colegas e realizar um desfile de moda em forma de protesto. Elas, obviamente, sofrerão ataques por todos os lados.

Apenas em seu primeiro longa, a diretora Mounia Meddour impressiona com um controle absoluto da direção e na composição de cenas. Desde a cena de abertura, onde Nedjma e uma amiga são repreendidas no banco de trás de um carro, passando por uma certa cena de tiro, à sequência do desfile, Meddour dá urgência e tensão a Papicha, enclausurando suas personagens femininas – e elas são donas do filme, os homens não passam de figuras que ameaçam e questionam suas liberdades – e dando a elas a jovialidade e rebeldia que lhes é característica, as amigas que se desentendem logo fazem as pazes num momento onde apenas elas podem se reconfortar.

Meddour acredita na força de suas personagens, principalmente Nedjma, uma propensa estilista que precisa das mãos para fazer os vestidos que tanto ama, note como a câmera da diretora sempre busca os toques, por mais invasivos que sejam – como na cena do porteiro molestador -, e é justamente na cena final que um toque esperançoso deposita fé no futuro daquelas mulheres.

 

Family Romance, LTDA (dir. Werner Herzog) – Nota 8,0

De início acompanhamos um homem parado em uma via movimentada, ele parece aguardar alguém, depois notamos que uma garota passa por ele diversas vezes, até que o homem a aborda e pergunta se ela é Mahiro, ela confirma e ele se apresenta como seu pai. Em seguida, ambos curtem o momento juntos, vão às cerejeiras para tirar diversas fotos, ela vai se soltando aos poucos, enquanto ele se mostra muito mais entusiasmado. Presenciamos aquela interação por um bom tempo, a estranheza daqueles momentos pode passar despercebido por alguns, mas no corte seguinte descobrimos do que se trata.

Yuichi Ishii é o presidente da Family Romance, Ltda, uma empresa que aluga pessoas substitutas para clientes que precisam de ajuda no dia a dia: alguém para levar a culpa no trabalho ou um membro da família para um evento social. Um dia, Yuichi é procurado por uma mulher que precisa de um homem para simular ser o pai de sua filha adolescente. Pasmem: a empresa é real, inclusive Yuichi interpreta a si mesmo nesta obra que flerta com o documental e a ficção.

A direção é do alemão Werner Herzog, dos brilhantes Aguirre, A Cólera dos Deuses e Fitzcarraldo, estes perfeitos enquanto direção de arte e fotografia, aqui, Herzog abandona qualquer tipo de grandiosidade técnica apelando para um estilo de filmagem entre o amador – as crianças não resistem a olhar para a câmera – e o experimental, de imagem digital e uma câmera voyeur sempre próxima aos personagens, como se quisesse captar qualquer tipo de emoção deles para posteriormente utilizar aquele material em um vídeo promocional da Family Romance.

Neste jogo de encenações – algumas hilárias, como a da youtuber que contrata paparazzi para tirar fotos dela em uma avenida movimentada e atrair a atenção dos transeuntes – Herzog nos propõe o debate: é possível comprar sentimentos e simular sensações? Ao compasso que Yuichi realiza diversos serviços, ele se envolve com a jovem Mahiro de maneira intimista demais, ao ponto de questionar a própria realidade e o futuro daquela relação. Neste mundo de falsas verdades, o longa nos transporta ao dia-a-dia simulado de uma empresa que entrega o que parecia perdido. Bizarro e instigante na mesma medida.

 

O Paraíso Deve Ser Aqui (dir. Elia Suleiman) – Nota 8,0

Já na genial e hilária cena inicial, o diretor Elia Suleiman deixa clara a forma com que irá entonar seu filme: uma procissão religiosa é interrompida quando os fiéis e o padre não conseguem adentrar a igreja, fechada por dentro, devendo então apelar para a violência. Essa quebra tira do espectador um riso preso, o famoso “ri de nervoso”, e é desta forma que Suleiman também reage ao que presencia mundo afora, com certo nervosismo e espanto por sempre encontrar a Palestina no tal “mundo moderno”.

Com um humor bem particular, entre a sátira e a tragicomédia, Suleiman expõe suas críticas ao mundo ocidental por meio de várias gags que vão se sucedendo, tendo como único elo o próprio diretor que interpreta a si mesmo – de chapéu e óculos, lembrando Buster Keaton – ele viaja por vários lugares do mundo em busca de um novo lar, enquanto observa calado os diversos comportamentos humanos, alguns absurdos, como os americanos em Nova York carregando suas armas e rifles como se fossem adereços comuns ou policiais se divertindo de maneira idiota enquanto uma mulher está amordaçada no banco de trás da viatura.

É por meio de suas inteligentes metáforas que O Paraíso Deve Ser Aqui se sustenta por seus deliciosos 97 minutos. Suleiman não fala e nem se explica, apenas observa a tudo atentamente, seu olhar curioso, assustado e expressivo reage às estranhezas que vai presenciando, onde ele esperava encontrar beleza acaba encontrando as mazelas de seu lar, vai ver é por isso que, na cena final, Suleiman aprecia com tanto carinho jovens em uma festa. Deve ser mais esperançoso vislumbrar um futuro próspero para a Palestina do que esperar que aquele mundo afetado que ele rodara encontre a paz novamente.

 

Mr. Jimmy (dir. Peter Michael Dowd) – Nota 8,0

Akio Sakurai não é um simples fã de Led Zeppelin, ele tem a banda e, principalmente, o guitarrista Jimmy Page, como estilo de vida, em suas próprias palavras: é sua personalidade.

Nascido no Japão, Akio ouviu a banda pela primeira vez já na adolescência e foi como se um feitiço o atingisse. Akio se encantou pelas apresentações de Page – uma banda de shows ao vivo, diz ele – e quis ser como o astro, passando a imitar seus trejeitos, estilo, roupas, aparelhagem e tudo o que fosse possível. A obsessão foi tanta que ele chegou a contratar uma designer de moda para desenhar, nos mínimos detalhes, uma das roupas que Page usava em suas apresentações.

Akio queria a maior fidelidade possível não para ser o cover perfeito, mas para que em suas apresentações ele levasse a essência de Page ao público, e para ele esta mística estava além do som e das letras, ela também passa pelo maquinário e pelas vestes.

Esta sina de Akio o fez ascender nos clubes japoneses onde se apresentava como cover, até que o próprio Page foi vê-lo tocar um dia, após aquele encontro Akio rumou para os EUA a fim de formar uma banda com membros apaixonados e enfeitiçados como ele, pessoas que soubessem diferenciar as intros de Whole Lotta Love em diferentes anos. Mas será que existem pessoas assim?

Ele chegou a formar o Led Zepagain, mas com o passar do tempo (foram mais de 200 apresentações) nem todos os membros estavam dispostos a continuar o que Akio queria: dar ao público a oportunidade de sentir a aura do Led Zeppelin e de Jimmy Page no estado mais puro possível. Sua obsessão, dedicação e, acima de tudo, respeito por Jimmy Page o fizeram único. Tanto que até hoje Akio permanece em busca de outros músicos como ele: que não curtem apenas “bandas de jukebox”. Por mais pessoas assim.

Um documentário obrigatório aos fãs de uma das maiores bandas da história do rock e da música.

 

Lara (dir. Jan Ole Gerster) – Nota 8,0

Lara é sobre resolver mágoas do passado da maneira mais óbvia: enfrentando-as. Mas também é sobre escolhas da vida, frustrações, orgulho e até esperança, por que não? A frieza do cinema alemão não tira o fator emoção deste forte estudo de personagem.

Já de início percebemos que Lara não está à vontade, nem nesse mundo, nem em lugar algum, talvez por isso ela viva isolada, aposentada e frustrada, ainda que sua postura sisuda, fria e orgulhosa a permita ser vista com certo respeito e até desconfiança pelos demais. Sua substituta a questiona sobre o que Lara fizera para ser tão respeitada, seria amor pela profissão? A protagonista responde que amor nunca fora um dos motivos. Percebemos que para Lara esse respeito dos demais é importante.

No dia de seu aniversário de 60 anos, Lara enfim desperta e resolve fazer as pazes com o passado – não sabemos com quais intenções e isso mal se explica, tamanha sua complexidade. Talvez lhe tenha caído a ficha: ela está entrando na terceira idade e o filho tem a apresentação mais importante de sua vida. Acompanhamos esse dia do início ao fim e, neste dia a seu lado, descobrimos até que ponto uma escolha por intermédio de outros e por falta de confiança em si pode mudar não só uma vida, como também a daquela pessoa que mais se ama.

Aos poucos vamos adentrando a barreira que Lara construiu ao seu redor – a franja sobre o rosto é simbólica – seu mistério nos fisga, suas atitudes são dúbias: ela compra os últimos ingressos para o concerto do filho. Boa vontade para enchê-lo de orgulho ao ver o salão lotado ou certo arrependimento? Vamos descobrindo que uma escolha no passado tornou Lara esta mulher madura e segura do que fazer, mas ainda não plenamente feliz. As porradas da vida, e suas próprias escolhas, fizeram Lara forte, ao mesmo tempo que ressentida. E não somos todos assim? O importante é que sempre resta tempo para seguir nossos sonhos.

 

Pacificado (dir. Paxton Winters) – Nota 8,0

Vencedor da Concha de Ouro no Festival de San Sebastián e eleito pelo público da 43ª Mostra de SP como o melhor filme de ficção brasileiro, Pacificado parece revelar que nós brasileiros ainda queremos ver “filmes de favela”, até mesmo porque o longa demonstra ter algo a acrescentar neste subgênero estigmatizado pós Cidade de Deus – que para o bem ou para o mal se tornou um marco.

O diretor é o norte-americano Paxton Winters. Peraí, um americano contando história de favela? Ironicamente, sim. Winters morou na comunidade do Morro dos Prazeres durante 8 anos e por isso sabe do que está falando. Talvez seu vislumbre seja mesmo ingênuo, não notando todas as mazelas daquela favela, mas Winters humaniza com uma sensibilidade ímpar o protagonista Jaca (Bukassa Kabengele, ator congolês naturalizado brasileiro), que volta à comunidade que comandava há 14 anos, agora dominada pelo traficante Nelson, interpretado por José Loreto, um sujeito barra-pesada que fará de tudo para se manter no controle da situação.

Por mais que Winters pise nesse terreno de pobreza e tráfico de drogas por tantas vezes explorado, ele consegue fugir de alguns clichês, enriquecendo sua história com laços familiares confusos e personagens que fogem aos arquétipos da favela, além de se apoiar menos em tiroteios, mortes, palavrões e na presença ameaçadora da polícia, sua história é mais sobre as pessoas e menos sobre a favela em si, embora esta seja praticamente uma personagem coadjuvante. Sua direção, aliada à fotografia – também premiada pelo júri em San Sebastián – enriquece a produção deixando-a próxima do registro documental de uma realidade nada glamourizada.

Ao final, Pacificado traz certo fôlego a este subgênero por lançar um olhar diferenciado e mais humanizado àquelas pessoas, fugindo do esgotado polícia versus ladrão ou das brigas entre gangues rivais.

 

O Filme do Bruno Aleixo (dir. João Moreira e Pedro Santo) – Nota 8,0

Confesso que eu nunca ouvido falar de Bruno Aleixo, personagem do YouTube de humor sarcástico que faz muito sucesso em Portugal. Na trama, Bruno recebe um convite para realizar sua própria cinebiografia. Em busca de ideias para o texto, Bruno – que tem uma cabeça de cachorro fofinho em um corpo imóvel – se reúne com seus amigos tão estranhos quanto: uma personificação da criatura do filme “Monstro da Lagoa Negra”, um busto de Napoleão Bonaparte e um ser peludo de nome Homem do Bussaco quase impossível de ser compreendido com sua fala atropelada.

Transformar um programa de esquetes curtas em longa não é tarefa fácil, imagine um filme do Chaves ou do Chapolin, é preciso um roteiro que se sustente em algum propósito por mais de 90 minutos e, embora alguns episódios do menino da vila tenham essa duração, a maneira absurda e o humor ágil com que a narrativa do Bruno Aleixo funciona só dificulta as coisas.

Sentados numa mesa, os quatro amigos passam a discutir diversas ideias de como realizar o filme sobre Bruno, transitando por diversos gêneros, do terror ao policial, fazendo referências a filmes como O Poderoso Chefão e Busca Implacável e até às telenovelas brasileiras. Sem amarras e numa proposta completamente fora da caixinha, os personagens passam a imaginar as histórias mais absurdas possíveis que são efetivadas em live-action onde eles são interpretados por figuras populares do cinema português, hilário que a cada novo narrador a ideia é completamente diferente, alguns nitidamente vão compondo a ideia naquele exato momento e alguns até se esquecem de colocar Bruno na história.

A duração é o que joga contra, já que é dado um momento em que a proposta ironicamente bem despropositada fica clara para o espectador, com isso, resta embarcar nas atrapalhadas e hilárias sequências de esquetes cinéfilas e mini-exercícios de gêneros que definem bem o que O Filme do Bruno Aleixo é: quatro amigos de humor escrachado e até infantil sem noção alguma de cinema imaginando algo tão sem sentido quanto suas próprias existências. É o absurdo pelo absurdo. Se fizer rir já valeu.

 

Cicatrizes (dir. Miroslav Terzić) – Nota 7,0

Na cena de abertura, um muro alto preenche a tela, a seguir a protagonista Ana (Snežana Bogdanović) surge e caminha lentamente rente a ele. Em casa, Ana tem uma postura acanhada e apática, a filha é arredia com ela, o marido trabalha à noite, aos poucos vamos percebendo que Ana é uma personagem amargurada e solitária que varia do trabalho de costureira a uma rotina de investigação.

Caso você não tenha lido a sinopse, Ana perdeu o filho durante o parto há 18 anos, porém ela nunca soube onde ele fora enterrado, desde então ela luta para descobrir o destino de seu corpo, alegando descaso das autoridades, mas foram anos em vão. Após tentar a ajuda de uma associação de crianças desaparecidas e ir ao necrotério, Ana finalmente consegue sair daquele calvário quando recorre à ajuda de uma funcionária pública de um cartório onde os óbitos são registrados. Um fio de esperança surge para nossa protagonista.

O diretor Miroslav Terzic mantém Ana sempre atrás de grades, cercas e janelas, ela vive naquela prisão que ela mesma se impôs, se escondendo atrás dos muros e em seu escuro ateliê de costura. A filha chega a dizer que Ana está “sempre esperando alguma coisa”, talvez o filho surgir à porta dizendo: mãe, estou aqui. Em sua solidão, Ana costura suas cicatrizes para se manter inteira.

Inspirado em vidas reais – talvez não uma específica, mas em várias espalhadas por aí – Cicatrizes é levado de maneira fria, típico do cinema do leste europeu. Em alguns momentos chega a lembrar o russo Sem Amor e o argentino Uma Espécie de Família, seja pela temática investigativa ou pela negligência com recém-nascidos, porém Cicatrizes se apropria da humanidade e do afeto da protagonista com maior louvor. Torcemos para que sua batalha pela verdade tenha um final feliz.

 

La Llorona (dir. Jayro Bustamante) – Nota 7,0

Não se engane pelo nome, esta co-produção entre Guatemala e França não tem nada a ver com aquele filme do universo Invocação do Mal, a não ser pelo terror que aqui, definitivamente, funciona.

Enrique é um general aposentado que supervisionou um genocídio na Guatemala há 30 anos. Ele é condenado por seus crimes e simula um ataque para que não vá para a prisão. Durante a noite, já em casa, Enrique começa a ouvir o lamento de La Llorona, atirando a esmo contra o fantasma que ele diz existir. A esposa e a filha do militar, então, acreditam que ele está começando a sofrer de demência.

O diretor Jayro Bustamante vai na contramão dos filmes de terror de gênero nos quais as pessoas atormentadas por espíritos malignos são as vítimas pelas quais devemos torcer. Aqui, Enrique e sua família vivem em uma fortaleza protegidos por seguranças – necessários após a sua não ida para a prisão – seus empregados são indígenas nativos do país – amedrontados pelo espírito da Llorona, que para eles é real – e a filha do casal é a única com discernimento sobre os feitos do pai, sendo repreendida pela mãe “não acredito que você virou comunista, desde quando você é esquerdista?”.

Enclausurados e sem poder sair devido à multidão que protesta lá fora, familiares e empregados vivem um terror dentro do próprio lar, as alucinações de Enrique vão se tornando cada vez mais assustadoras e perigosas, enquanto vamos descobrindo a verdade por trás de seus ataques e visões.

Com uma ambientação claustrofóbica e fotografia soturna, Bustamante desliza pelos corredores e cômodos da casa com uma câmera vagarosa e silenciosa, vale destacar também o trabalho de som, os burburinhos das pessoas lá fora não deixam os moradores se esquecerem de que estão cercados e que não têm para onde fugir, enquanto os lamentos da Llorona aos ouvidos de Enrique são dignos de um som que não gostaríamos de ouvir de madrugada.

La Llorona poderia cair facilmente nos clichês do gênero, e os elementos do terror são aproveitados até com alguma moderação, mas é justamente pela importante temática política de pano de fundo que o filme se torna um horror com grande carga dramática e psicológica, não dependendo de bonecas ou entidades demoníacas para assustar, o passado condenável do patriarca é o suficiente para lançar o horror sobre aquela família.

 

Dente de Leite (dir. Shannon Murphy) – Nota 7,0

Talvez seja um exagero por parte do júri da 43ª Mostra de São Paulo ter escolhido este como um dos vencedores. Não porque o longa da estreante Shannon Murphy seja ruim, pelo contrário, Dente de Leite é um bom filme indie que traz atores consagrados como Ben Mendelsohn e Essie Davis nos papéis de pais de uma garota vítima de câncer, Milla (Eliza Scanlen) num encontro inusitado entre coming of age e a morte.

Se por um lado Murphy acerta ao não apelar para o drama fácil, seguindo por um caminho mais tragicômico, é justamente ao deixar tudo cool demais que a história parece ser construída na base do “somos diferentões, goste da gente”, a bem da verdade é que é difícil não gostar, todos os atores estão muito bem em seus papéis, inclusive o traficante juvenil Moses vivido por Toby Wallace – premiado em Veneza como ator revelação – ele e Milla se envolvem em um romance praticamente assistidos pelos pais da garota.

Entre momentos estranhos, cômicos e difíceis de comprarmos, ao final, o longa nos ganha por uma emocionante sequência na praia onde tudo se encaixa ou pelo menos faz certo sentido. Depois de tanto sofrimento, Milla enfim pôde viver seus últimos dias da maneira como quis.

 

Mente Perversa (dir. Savas Ceviz) – Nota 7,0

A livre tradução “Mente Perversa” para o título alemão “Kopfplatzen” – algo como “cabeça em explosão” – faz sentido já na cena de abertura onde Markus (Max Riemelt) se masturba, observa crianças e chora com culpa. Um momento bastante incômodo que faz a ficha do espectador cair: estamos diante de um pedófilo, não devemos criar qualquer tipo de empatia por ele, apesar de seu choro. Algo que vai na contramão de “Shut Up and Dance”, episódio bastante adorado por muitos fãs de Black Mirror.

Aqui, Markus é um arquiteto respeitado e de boa fisionomia, o monstro que se masturba e se excita por crianças passa despercebido em um parque quase vazio perseguindo um menino. Markus não consegue controlar estes impulsos, embora tenha noção de que aquilo não seja normal e sempre tente resistir. Ele chora, sente culpa, procura ajuda psicológica, se incomoda quando na presença de alguma criança, seja o sobrinho ou algum vizinho. Estamos diante de um personagem e seu fardo, e esse parece ser o maior interesse do diretor Savas Ceviz.

A proposta de Ceviz é nos colocar na perspectiva e na mente deste pedófilo, o que é bastante arriscado por si só. Quem assistiu Coringa e reclamou da glamourização da violência é capaz de deixar a sala de Mente Perversa. Ceviz não tem medo de incomodar o espectador. Ele coloca Markus constantemente na presença de crianças, chegando a ficar bastante íntimo de uma delas quando começa a namorar sua mãe, cria-se um laço quase paternal entre ambos, o que dá ao espectador uma sensação de angústia a cada encontro entre eles, principalmente pela nada delicada direção de Ceviz que abusa dos closes no corpo do jovem Arthur e os coloca em situações arriscadas, como um banho juntos. Onde está a mãe nesses momentos? Serve de alerta.

Por um lado, é muito interessante a forma com que Ceviz expõe a pedofilia de Markus como algo de sua natureza, uma predisposição, e não como uma doença que ele pode curar. Assim como os lobos caçam e tem o instinto de uivar à lua, Markus parece ter herdado ou criado esta predisposição numa época impossível de ser estabelecida. Por outro lado, Ceviz usa e abusa dos momentos angustiantes, e talvez seja essa mesmo sua intenção, mostrar ao espectador como este personagem se sente com algo que ele não consegue tratar, o seu martírio acaba sendo nosso também.

Ao final, Mente Perversa se resolve como um estudo de caso que parece não ter solução, um joguinho de suspense entre um lobo em pele de cordeiro e uma vítima pronta para ser fisgada, nem tanto um drama, apesar de toda a carga de Markus, mas mais um thriller por tanta tensão gerada por Ceviz e suas escolhas.

 

A Garota com a Pulseira (dir. Stéphane Demoustier) – Nota 7,0

O filme abre com uma sequência curiosa em uma praia: observamos ao longe pai, mãe e filha sendo abordados por dois policiais, após uma breve conversa a jovem acompanha os homens da lei. Tudo ocorre sem escândalos, sem correria, tudo numa certa passividade que nos intriga. Quem já conhece a sinopse sabe do que se trata: Lise (Melissa Guers) tem 16 anos de idade e é acusada de matar a melhor amiga.

Após a abertura, há um salto de 2 anos na história, estamos próximos ao início do julgamento de Lise, agora maior de idade. Ela usa tornozeleira e vive em prisão domiciliar. O que prometia ser um típico filme de tribunal com acusações do lado da promotoria e as réplicas pelo lado dos advogados de defesa – não deixando de ser – se transforma também em um estudo da ética e da moral em processos de tribunais e sobre até que ponto o Estado (na figura da promotora) é capaz de ir para incriminar alguém.

Dada a frieza de Lise, é normal o espectador tomar partido sobre sua participação no crime, o filme, na verdade, se resume bem à fala da mãe (Chiara Mastroianni) quando esta responde à promotora que a acusa de ser complacente por ser mãe da ré: “é tudo uma questão de ponto de vista, eu faço o meu papel de mãe, e você faz o seu papel de acusadora.” Cabe ao espectador ter o seu.

Neste jogo cínico e cênico, pouco importa se Lise cometeu ou não o crime (apesar de ter a minha versão), A Garota com a Pulseira se utiliza do thriller de tribunal para discutir até que ponto vai a exposição da vida particular de pessoas que sequer estão no banco dos réus e os meandros de um sistema falho que depende demais de pontos de vistas para incriminar alguém.

 

Filhos da Dinamarca (dir. Ulaa Salim) – Nota 7,0

O mais assustador deste longa dinamarquês é como esta ficção vem se tornando cada vez mais real mundo afora, podemos perceber até mesmo no nosso Brasil, onde a extrema-direita ataca diretamente as minorias e chega ao poder por meio de falácias e promessas polêmicas.

Para um filme de estreia, Ulaa Salim manda muito bem, ele tem controle absoluto dos símbolos, das bandeiras dos ultranacionalistas às máscaras da resistência (o Coringa já deu as caras no Chile e no Líbano), com uma direção de arte pesada que aposta nos tons escuros, Filhos da Dinamarca é um filme necessário que poderia muito bem representar o país nórdico na corrida pelo Oscar.

 

Boy Meets Gun (dir. Joost van Hezik) – Nota 7,0

Uma inusitada comédia holandesa de atrapalhadas com uma boa dose de humor negro que remete a Fargo dos irmãos Coen e um protagonista depressivo que ganha “poderes” quando fica na porte de uma arma e decide romper seu status quo. Polêmico, né? Em tempos de Coringa essa premissa é um perigo.

Não espere nada além de um eficiente exercício de gênero que faz rir muito em função do ótimo timing cômico do protagonista interpretado por Eelco Smits – notei grande semelhança com Nicolas Cage, quem sabe não rola até um remake americano? Sinceramente adoraria ver Cage neste papel. Seu personagem acaba ficando preso nesta cadeia de acontecimentos que, pelo certo ou pelo errado, trouxe algum sentido à sua vida, enquanto vai se vendo cercado pelo dono da arma e por uma detetive em busca de justiça.

Pra nossa sorte o filme tem curtíssima duração e não chega a ficar cansativo, mas tem um final que quer impactar demais e extrapola quando deveria ser mais ameno, os exageros se sucedem sem chance de respiro ao espectador, ainda assim, o saldo é bem positivo.

 

Empuxo (dir. Rodd Rathjen) – Nota 7,0

Daqueles filmes pesados onde o protagonista vive um martírio sem fim e tem que se virar para sobreviver àquele inferno. Promete ser o Cafarnaum deste ano na Mostra, um coming-of-age com requintes de crueldade. Muitas pessoas, inclusive, deixaram a sessão em que eu estava, não aguentando a violência sofrida pelos personagens.

O maior trunfo do estreante Rodd Rathjen é não vitimizar o protagonista Chakra (Sarm Heng), que passa a agradar os donos do barco em que está para que sua temporada a bordo seja menos dolorosa, assim, o filme abandona o maniqueísmo típico dessas produções, passando a questionar nossa própria postura em relação ao garoto.

Um exemplar filme de sobrevivência que faz um alerta acerca da crueldade da indústria pesqueira do golfo tailandês que até hoje mantém muitos jovens escravizados.

 

A Verdadeira História da Gangue de Ned Kelly (dir. Justin Kurzel) – Nota 7,0

Fui assistir a esse com um pé atrás por se tratar de um filme dirigido por Justin Kurzel, do péssimo Assassin’s Creed – não assisti Macbeth dele. Talvez pela baixa expectativa eu tenha sido surpreendido com seu controle estético quase obsessivo que, indiscutivelmente, chama atenção em diversas cenas.

O elenco também é chamativo, nomes como Russell Crowe, Nicholas Hoult e Charlie Hunnam dão as caras em participações pontuais mas muito bem alocadas nesta história de 3 atos, mas quem comanda as ações é mesmo George MacKay, intérprete de Ned Kelly na fase adulta, que vem se tornando um dos atores mais promissores de sua geração e que aqui impregna bem a insanidade do protagonista e líder de sua gangue, principalmente no ato final.

A brincadeira ao início, “nada do que você vai ver é real”, já nos desarma de quaisquer preconceitos para com as escolhas de Kurzel, com isso, é possível embarcar na calamitosa história de Ned Kelly, entre exageros condizentes com a lenda e uma excentricidade visual que fazem dessa versão um bom exemplar de um gênero que parecia haver se perdido em meio aos heróis.

 

Os Olhos de Cabul (dir. Eléa Gobbé-Mévellec e Zabou Breitman) – Nota 7,0

Caso fosse um live-action, Os Olhos de Cabul seria um filme quase insuportável de se assistir. A realidade da Cabul do final dos anos 90 é cruel. O regime Talibã prospera no Afeganistão e as mulheres se escondem embaixo de burcas e são apedrejadas na sarjeta por seus “crimes”. A desesperança toma conta de um país dominado pela religião.

No meio dessas mazelas e sofrimento, os apaixonados Mohsen e Zunaira resistem entre juras de amor e aventuras. Enquanto Atiq e Mussarat, outro casal que já não tem mais a mesma paixão, vivem fadados às suas vidas reclusas. Certo dia, Mohsen toma uma atitude sem sentido, impulsionado por algo que nem ele mesmo sabe explicar. As consequências serão fatais.

Os belos traços da animação da dupla de diretoras Zabou Breitman e Eléa Gobbé-Mévellec amenizam um pouco o clima pesado desta adaptação da obra As Andorinhas de Cabul de Yasmina Khadra, mas é impossível não se ressentir com estas quatro histórias que se entrelaçam numa barbárie impossível de se esperar um final feliz.

 

Adam (dir. Rhys Ernst) – Nota 7,0

Uma das coisas que me atrai em festivais é a oportunidade de assistir aos filmes polêmicos que as distribuidoras com certeza evitarão comprar para distribuição comercial posteriormente, Adam é destes filmes de oportunidade única – embora seja feito todo sob um estilo indie-pop que pode fazê-lo estrear nos cinemas em breve, não duvido.

Muito achincalhado nos festivais pelos quais passou lá fora, Adam foi tido como filme transfóbico. Por sua proposta informativa, claramente voltada ao público teen – e talvez por este que vos escreve ser um hétero-cis – ele já vale pelo mergulho que se propõe a dar naquele mundo jovem queer progressista que vai de festas a protestos, sempre em meio a novas descobertas.

É nessa hétero-cis-normatividade que funciona a cabeça do protagonista Adam, e já parte daí a primeira ressalva de muitos para com o filme: como o diretor trans Rhys Ernst fala sobre o mundo queer colocando como protagonista um homem branco e hétero? O filme é baseado no livro homônimo da escritora Ariel Schrag, então, o problema que muitos enxergam já está lá no material de apoio, o filme só herda tudo.

Na história, o desajeitado adolescente Adam (Nicholas Alexander) acaba de terminar o primeiro ano do ensino médio e vai a Nova York passar as férias de verão com a irmã mais velha, Casey (Margaret Qualley). O jovem apaixona-se à primeira vista por Gillian (Bobbi Menuez), em uma das festas da comunidade LGBTQ que a irmã frequenta. Gillian assume erroneamente que Adam é trans. Atordoado e apaixonado, o garoto concorda com a suposição dela, resultando em uma sucessão de erros que ele não está muito pronto para cometer.

Pela sinopse é possível prever o que tem gerado tanto burburinho, já que Adam assume ser algo que não é apenas para transar com uma garota lésbica. Assim como em Coringa – considerado perigoso por estimular comportamento agressivo – cabe ao espectador filtrar o que há de certo e errado nas atitudes de Adam – pra mim ficou claro que ele é um jovem que comete um erro gravíssimo mas que sequer entende muito bem o mundo que o cerca.

No final das contas é como diz o velho ditado: “os fins justificam os meios”. Os caminhos e escolhas de Ernst, e logicamente de Schrag, podem ser questionáveis e questionados, mas vejo como positiva a inclusão e representatividade aqui. Às vezes a mensagem passada supera a forma como ela é passada. Adam está aquém do que a comunidade LGBT precisa – há bons indies pra isso -, mas já é um pequeno passo no circuito comercial ainda tão restrito a eles.

 

Chuvas Suaves Virão (dir. Iván Fund) – Nota 7,0

O longa abre com um grupo de trabalhadores em uma obra, rodas de trator tomam conta da tela, um cachorro descansa em paz, anoitece e há uma queda de energia naquela província argentina. Na manhã seguinte, todos os adultos dormem e as crianças e os animais se veem sem o auxílio daqueles que zelavam por eles.

Apesar da premissa batida de crianças à mercê num mundo sem adultos, é pelo tom naturista e fantasioso que o diretor Iván Fund impõe à narrativa que ele nos fisga.

A estrutura do longa é dividida em 5 capítulos, como numa espécie de fábula, a cada capítulo há um avanço no enredo, as atividades nunca se repetem por muito tempo, o que é bom, pois assim a história vai evoluindo junto das personagens.

Nota-se que as crianças vão evoluindo gradualmente – não há uma degradação delas como em O Senhor das Moscas – se no início elas passaram um bom tempo em casa se questionando o que havia acontecido aos adultos, é quando elas se aventuram, numa espécie de êxodo, que elas vivenciam o mundo lá fora: surge uma jovem mais experiente que pode ajudá-los, a primeira paixão, uma ameaça, e até um debate científico, mas que logo dá espaço para uma brincadeira, pois, afinal de contas, são crianças – a inocência também os acompanha, como podemos ver numa sequência em que jogam água em um ferimento para curá-lo.

O final é abrupto e inesperado, definindo o filme como uma fábula bastante misteriosa que não tem grandes pretensões de se explicar, talvez sirva apenas para destacar como a inocência e pureza das crianças ainda é capaz de encantar.

 

Fotógrafo da Guerra (dir. Boris B. Bertram) – Nota 7,0

Quando olhamos para uma foto olhamos para muitas histórias. Além do que vemos impresso há algo a ser contado sobre os jornalistas e fotógrafos que deixam o conforto de seus lares e vão a zonas de guerra onde podem perder a vida a qualquer vacilo ou ataque de ofensivas inimigas enquanto realizam seu trabalho e sua paixão.

O dinamarquês Jan Grarup é este “fotógrafo da guerra”, por mais de 25 anos ele atua como fotógrafo nas zonas mais perigosas do mundo, clicando não só as tragédias da guerra, mas aquilo que mais lhe encanta: simples gestos de amor em meio aos destroços. Mas há mais, Grarup também é pai de 4 filhos, 3 meninas e 1 menino, e quando volta a Copenhague ele deve administrar a casa já que sua ex-esposa não pôde mais ficar com os filhos devido a um tumor cerebral.

Há esse balanceamento entre o homem que literalmente vai para a guerra e o homem que deve providenciar sustento para os filhos. O documentário tem força nas duas frentes, tanto nas aventuras em solo iraquiano, quando a qualquer momento o Estado Islâmico pode atacar de surpresa, quanto em casa, onde Grarup sempre se mostra a par das rotinas dos filhos, controla seus horários e demonstra um grande carinho por todos, principalmente por estarem passando por um momento muito delicado devido à doença da mãe.

O que falta ao longa é nos aproximar ainda mais do íntimo de Grarup, vemos ele realizando ambas tarefas, de pai e fotógrafo, mas o que ele pensa e sente fica alheio a nossa percepção. Essa sensação de empatia parece bem próxima, mas o documentário insiste em permanecer distante. Talvez tantos anos levando a fotografia como seu trabalho e as mortes como algo corriqueiro tenham criado essa carcaça ao redor de Grarup e não seja fácil penetrá-lo, apenas fitá-lo.

 

System Crasher (dir. Nora Fingscheidt) – Nota 6,0

Este pré-indicado da Alemanha ao Oscar Internacional irá depender da boa vontade dos votantes da Academia para se classificar entre os finalistas já que ainda não tem distribuição garantida nos EUA. Vale lembrar que este ano 7 pré-indicados garantirão vaga na semifinal por pontos, enquanto outros 3 serão escolhidos por um juri especializado, pode ser que System Crasher consiga uma dessas 3 vagas. Potencial tem, mesmo que eu não tenha embarcado por inteiro na proposta.

System Crasher é o típico filme de festival que inflama, emociona e incomoda as plateias com suas crianças protagonistas. Me lembro de Polissia (2011), Short Term 12 (2013) e Cafarnaum (2018), filmes onde crianças sofrem as mazelas de um mundo cão e de sistemas incapazes de lhes oferecer assistência.

Aqui, Benni (interpretada pela excelente Helena Zengel) é uma jovem de 9 anos que vive sendo expulsa de escolas, casas de apoio e instituições. Ela não é órfã, sua mãe tem outras duas crianças menores e é incapaz de cuidar da filha que é extremamente agressiva, revoltada e imprevisível. O serviço social contrata Micha (Albrecht Schuch) como mediador escolar para acompanhar Benni nas aulas, porém a garota reluta a tudo que possa invadir seu espaço, até que Micha tem uma ideia que poderá ajudar Benni a superar sua agressividade.

Dá pra notar que este é o primeiro longa de ficção da diretora Nora Fingscheidt. Entre boas e discutíveis escolhas – os rápidos insertes de flashbacks e o final “ousadinho” são mal trabalhados -, Fingscheidt acerta quando coloca o esforçado Micha no comando das ações, porém perde o fio da meada quando embarca de maneira extrapolada na rebeldia de Benni. Ora, se o próprio título do filme denuncia que Benni é uma “destruidora de sistemas”, em diversos momentos me senti incomodado com a negligência dos adultos. Em diversas ocasiões Benni é vista em situações de risco convencionalmente criadas para nos deixar aflitos. Se isso ocorresse uma vez ou outra seria compreensível, mas incomoda a constância dessas permissividades. Pelo menos, Fingscheidt consegue transmitir para as telas os rompantes de fúria de Benni como uma veterana, ela filma com realismo e rebeldia, embora muitas das sequências sejam tragédias anunciadas é possível perceber como os adultos não têm solução para o problema de Benni. E ao final dá para sentir o mesmo com a proposta de Fingscheidt neste System Crasher.

Em suma, é um filme feito para incomodar e sofrermos na cadeira com a incontrolável Benni, e é inegável que Zengel está um ou dois tons acima do filme em uma atuação irritante e ao mesmo tempo adorável. Isso me faz perguntar: o quanto o Oscar e outras premiações ainda precisam ver para criar uma categoria para jovens promessas? Zengel é uma das melhores do ano.

 

Meu Verão Extraordinário com Tess (dir. Steven Wouterlood) – Nota 6,0

Pelo título é possível imaginar que esta co-produção entre Alemanha e Holanda seja uma aventura teen com uma pitada de Meu Primeiro Amor, até é, mas as intenções do diretor Steven Wouterlood e da roteirista Laura van Dijk, tendo como base o livro de Anna Woltz, é bem inusitada: colocar o protagonista Sam como um garoto que flerta a todo instante com a morte, na verdade, ele se imagina sendo o último da família a morrer e tendo de encarar a solidão como última companheira. Para isso ele usa as férias para colocar em prática seu plano de treinar a solidão, mas conhece uma garota que o fará rever seus questionamentos.

Logo de início Sam está “curtindo” as férias na praia enterrado em uma cova que ele mesmo cavou. Sam não chega a ser um garoto de comportamento depressivo, esta sua sensibilidade em antever uma época com a qual crianças não deveriam se preocupar é que dá camadas a ele e ao filme. Suas dúvidas são de quem ainda tem muito a aprender com o mundo ao redor, quando o irmão quebra a perna Sam pergunta a uma mulher se ele irá sobreviver, ela ri e responde que aquilo não passava de “male’s problem”, como se os homens não aguentassem as pancadas que a vida dá como as mulheres o fazem.

As férias de Sam melhoram quando ele conhece a animada Tess, uma garota que, ao contrário de Sam, tem mais interesse no próprio passado do que em seu futuro. Ambos embarcam em uma aventura infantil que nunca beira o baixo-astral, embora cerceie a todo momento a morte, a solidão e a paternidade, temas maduros com os quais Wouterlood não tem intenção de dramatizar demais sua história, fazendo deste um feel good movie típico onde famílias de férias amadurecem juntas.

 

Viver Para Cantar (dir. Johnny Ma) – Nota 6,0

Viver para Cantar fala sobre tradições chinesas ameaçadas pelo avanço do capitalismo – e não seria forçar a barra traçar um paralelo entre este filme e Aquarius de Kléber Mendonça Filho, principalmente pela forma com que ambas as figuras femininas lutam para resistir aos avanços de uma força quase invisível que quer derrubá-las a qualquer custo por não servirem mais àquelas sociedades, porém, enquanto Filho assume um lado altamente politizado, Johnny Ma se apega à fantasia para contar uma história de forma mais doce e menos incisiva.

Logo no início do longa acompanhamos um festival chinês onde um grupo de dançarinas se apresenta numa dança coreografada para espectadores que reagem com pouca empolgação. Viver para Cantar se mostra um filme de tom melódico onde o descaso para com os artistas de rua e de teatro é um demolidor de sonhos. A direção de Ma pode causar certa estranheza para nós ocidentais – dado o tom lúdico e fantasioso que a história toma – é como se chineses assistissem a um filme sobre tradições indígenas, há uma barreira invisível que felizmente o cinema nos permite ultrapassar com obras como essa.

Quando a líder de uma trupe de ópera recebe a notícia de que o teatro onde seu grupo se apresenta será demolido ela esconde o fato dos demais membros com medo de que eles se separem, enquanto isso ela busca um novo espaço para que as apresentações continuem acontecendo, caso contrário, pode ser o fim de um sonho.

Além de abordar o avanço da cidade sobre as zonas menos valorizadas, Viver para Cantar também retrata o conflito geracional. Os mais jovens do grupo já cederam à tecnologia – quando os vemos eles sempre estão portando aparelhos eletrônicos, tablets ou fones de ouvido – apenas uma jovem ainda resiste no grupo, a sobrinha da líder Zhao Li, e a tia teme que sua maior estrela se renda a este sistema que não trata as tradições antigas com devido respeito.

O que falta ao longa de Ma é assumir o que está explícito nas cenas de demolição, mesmo que o longa flerte a todo instante com a fantasia, a sensação de encantamento já é passada nas inúmeras apresentações teatrais que acompanhamos, assim como nas inserções de realismo fantástico onde sonhos e realidade se misturam, porém, falta assumir uma postura mais política, até mesmo pelos rumos que a história vai tomando, a mensagem humanista é inspiradora e enche os olhos, mas nem só de sonhos e deslumbres sobrevive a arte, ao final é preciso coragem para resistir.

 

O Século da Fumaça (dir. Nicolas Graux) – Nota 6,0

Um documentário interessante sobre uma comunidade na selva do Laos que ao mesmo tempo que depende do ópio para sobreviver se afunda em seu consumo, como deixa bem claro a cena que antecede ao título do longa, na qual uma cordilheira é tomada por uma cortina de fumaça oriunda não de neblina ou de nuvens, mas da queima do ópio.

Nitidamente encenado em alguns momentos, O Século da Fumaça desperta curiosidade no espectador por nos adentrar no estilo de vida daquelas pessoas, a maioria delas já velhas e em final de vida, algumas ainda reunindo forças e labutando nas plantações e reclamando da dura vida que sempre tiveram na aldeia da qual muitos já se foram.

O doc de Nicolas Graux foca no protagonista Laosan, um dependente químico e fisiológico do ópio que não encontra forças para quaisquer tipo de tarefas caseiras ou braçais, seus pais reclamam que ele precisa fazer algo, assumir a responsabilidade, dar um fim de vida digno a eles, sua esposa é quem faz as tarefas de casa, cuida e zela dos filhos, enquanto Laosan consecutivas vezes é mostrado dormindo ou fumando ópio.

Enquanto documentário não vai muito além disso, a bem da verdade é que me deu vontade de assistir a um longa sobre aquelas pessoas dirigido por Lav Diaz, principalmente por uma cena em específico: a de um canto chorado da esposa de Laosan que lamenta sua vida pobre. Um momento tocante no qual é impossível não compadecer de sua dor.

 

O Carcereiro (dir. Nima Javidi) – Nota 6,0

Engraçado como algumas surpresas acontecem quando selecionamos um filme por seu país. O cinema iraniano atravessa uma ótima fase e por isso escolhi este O Carcereiro de sinopse atraente àqueles que adoram um filme de prisão.

Década de 60, uma prisão está prestes a ser evacuada para um projeto de expansão de um aeroporto. Jahed, o carcereiro do local, está encarregado de transferir todos os presos para as novas instalações, mas um preso sentenciado à morte desaparece. Jahed terá de solucionar o caso o quanto antes para que não perca uma promoção nem a própria vida.

Logo de início é possível notar como este é um projeto de grande porte que não tem como base as discussões religiosas, políticas e opressivas típicas do cinema iraniano. Durante os créditos iniciais a câmera passeia por variadas divisões da enorme prisão, com uma trilha emocionante ao fundo. Este aspecto de superprodução comercial parece escolhido para levar grandes massas aos cinemas e nessa proposta O Carcereiro até se sai bem. Só incomoda o fato da roupa dos presos ser tão limpa, este aspecto mais “clean” já é um cartão de visitas para a proposta do filme, algo bem ameno, mesmo que se passe em uma prisão.

Dadas essas limitações que o diretor Nima Javidi atribui à produção, não há nada aqui que fuja do que já vimos centenas de vezes no cinema americano, de Um Sonho de Liberdade a Papillon, com a diferença de que aqui acompanhamos a história pela perspectiva do chefe da prisão e não do fugitivo, com isso, nunca sabemos se de fato alguém fugiu e menos ainda para onde foi, a dúvida e a obsessão de Jahed por seu prisioneiro acaba sendo também a nossa, não sabemos se devemos torcer para que alguém condenado à morte seja capturado ou escape ou para que o carcereiro consiga, enfim, cumprir com sua obrigação de entregar a prisão conforme lhe foi solicitado, e em se tratando do Irã, sabemos que, caso ele falhe, a punição será severa e ele será o provável condenado no lugar do desaparecido.

Cabe espaço até para um romance, outro elemento típico do cinema norte-americano, não chega a enfraquecer o filme, mas mostra como até mesmo o Irã, um país tão fechado para o imperialismo americano, já está cedendo a alguns de seus clichês.

 

Monos (dir. Alejandro Landes) – Nota 5,0

Um dos filmes sul-americanos mais queridinhos da temporada de premiações e de maiores chances de representar o continente na corrida pelo Oscar internacional é este colombiano Monos, premiado em diversos festivais mundo afora, de Sundance ao BFI London Festival.

É compreensível a força da obra, transpassada com louvor pelos planos abertos conscientemente capturados pela câmera de Alejandro Landes que nos leva mata adentro em algum topo de montanha, com sequências esfuziantes entre as folhas e correntezas de rio.

Apesar de toda a excelência enquanto produto cinematográfico – há muita beleza no projeto – seu maior demérito está em nunca sabermos quais as reais intenções por trás daqueles jovens, quem eles são, o que os levou até ali, tampouco o que está se passando no mundo lá fora – quando uma TV surge ligada ela transmite algo sobre o sequestro da norte-americana.

Há de se destacar também a trilha sonora invasiva de Mica Levi (do excelente Sob a Pele), sempre introduzida com muita presunção, como se nos obrigasse a contemplar algo grandioso.

Ao final, Monos soa como um exercício pretensioso do diretor Landes, que consegue nos vislumbrar com seu domínio técnico, mas até mesmo o mais belo veículo precisa de combustível para se locomover e nos levar a algum lugar, parado na vitrine não serve de muita coisa. Monos é admirável, mas só por fora.

 

Os Dias da Baleia (dir. Catalina Arroyave Restrepo) – Nota 5,0

Conforme Os Dias da Baleia vai avançando, fiquei com a sensação de que a diretora Catalina Arroyave Restrepo escolheu o caminho menos arriscado para contar sua história. Falta algo mais marginal numa história tão urbana. Obviamente cabe a ela ditar as regras do jogo, mas sempre me vi distante de sua protagonista jovem, inconsequente, privilegiada e que tem o grafite mais como um hobby do que como estilo de vida.

Cristina (Laura Tobón Ochoa) é uma jovem de classe média-alta que namora o grafiteiro Simon (David Escallón Orrego), o cenário é uma Medellin caótica, marginalizada, onde gangues rivalizam e disputam espaços nos muros. Cristina parece levar aquele “submundo” como provocação à família, em casa sempre alfineta a madrasta, mas nunca é repreendida pelo pai, enquanto à distância a mãe a convida para ir morar com ela na Europa. Esses privilégios tornam Cristina uma garota distante dos problemas mundanos e bem mais críticos de Simon, frequentemente censurado por sua arte de cunho político e até jurado de morte.

De maneira rebelde, Cristina decide responder à ameaça sofrida por Simon pichando uma baleia por cima do recado, o que é levado pela gangue rival como desrespeito e guerra declarada, porém, para Cristina aquilo não tem peso algum, seus maiores dilemas permanecem em casa, para onde ela pode escapar a qualquer momento, se afugentando daquela realidade dos grafiteiros.

Para um filme de estreia, Restrepo se sai bem tanto por dar energia à forma com que filma as ruas e muros de Medellin quanto por trazer naturalidade aos diálogos das ruas e no relacionamento entre os jovens, Restrepo até brinca com a baleia como metáfora para as atitudes impensadas e egocêntricas de Cristina. Só faltou criticar de maneira incisiva a forma com que a jovem vê o mundo, poderia ser um coming of age com um grande choque de realidade, mas falta essa pungência na direção da estreante.

 

Koko-di Koko-da (dir. Johannes Nyholm) – Nota 5,0

Uma das melhores coisas da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo é entrar em uma sessão sem saber muito do filme que está por vir. Logicamente a Mostra traz filmes badalados, concorridos e premiados em festivais, mas há sempre aquele filme escondido na programação vindo de um país exótico, com sessões quase vazias e com uma sinopse curiosa que desperta a atenção dos amantes dos filmes de gênero, dá pra dizer que Koko-di Koko-da é este filme.

Ainda traumatizados pela trágica morte de sua única filha, um casal decide fazer uma viagem para a floresta na intenção de se reaproximar. No meio do caminho, eles se deparam com um grupo de artistas excêntricos – um gigante carregando um cachorro morto, uma mulher de longos cabelos negros com um pitbull voraz na coleira e um palhaço de língua suja trajando terno branco, cartola e bengala -, eles os conduzirão a um verdadeiro pesadelo de terror psicológico, por meio de brincadeiras humilhantes e tensão constante.

Coprodução entre Suécia e Dinamarca, o longa dirigido por Johannes Nyholm já começa de maneira estranha. Pai, mãe e filha, fantasiados de coelhos, estão em uma festa que recebe dois humoristas pra lá de bizarros e de humor completamente questionável, a dupla convida a todos para assistirem a seu show e o homem solta: quem ficar por último fica com minha esposa. Os convidados riem, enquanto a família se entreolha numa reação espontânea. Um evento trágico sucede a festa, e o que poderia ser um drama carregado na emoção dá uma volta vertiginosa para algo inesperado.

Koko-di Koko-da trata sobre alguns temas interessantes como perda, luto e superação, mas sai completamente da caixinha na maneira de abordá-los, as escolhas emanam David Lynch, há coelhos, cortinas vermelhas, looping temporal, música perturbadora que antecede a chegada dos “vilões”, animação de fantoches, cenas pesadas de tortura, tensão psicológica, tudo mesclado numa confusa viagem entre sonhos, realidade e ilusão que vai nos confundindo e nos deixando curiosos acerca da trupe torturadora.

O filme não se explica muito. O que são aqueles três seres? Personagens do folclore nórdico? Apenas uma lenda urbana que o diretor ouvia quando criança? Personagens de algum conto sueco ou dinamarquês? Não é um grande filme, principalmente por nos deixar mais confusos do que satisfeitos, mas, de qualquer forma, desperta certo interesse, por mais bizarro que seja.

 

O Último Amor de Casanova (dir.Benoît Jacquot) – Nota 5,0

Que Giácomo Casanova foi um conquistador inveterado já sabemos, dadas as inúmeras adaptações cinematográficas que fizeram a figura adentrar o coletivo popular como um sedutor que contabilizava mulheres em sua vida libertina. Agora, que ele se apaixonou perdidamente por uma mulher a ponto de esquecer as demais já é novidade.

Diversos nomes já foram Casanova, de Marcello Mastroianni a Alain Delon de John Malkovich a Heath Ledger, por isso, é curioso que o diretor Benoît Jacquot tenha escalado o ator francês Vincent Lindon para o papel principal. À exceção de Malkovich (sem querer chamar o ator de feio), Mastroianni, Delon e Ledger têm uma aparência naturalmente clássica e romantizada que Lindon não tem.

O veterano Lindon tem uma postura muito mais madura e robusta que pode ser comparada à de Malkovich. Assim, entendemos a proposta de Jacquot neste longa: mostrar como a fama precedia o nome do conquistador. Basta notarmos como aqui as mulheres o olham antes mesmo que ele tente algo. E pra ele tudo bem.

Tudo muda quando Casanova chega exilado a Londres e conhece Marianne de Charpillon (Stacy Martin), pela qual logo se encanta. Após diversos encontros em festas, jogatinas e jantares, Casanova decide cortejar a moça, mas para sua surpresa ela não se mostra uma presa fácil aos seus avanço e exige que ele resista aos próprios desejos para que possa enfim tê-la.

Este jogo pode parecer interessante a princípio, vermos Casanova controlando seus impulsos sexuais e vendo sua fama de sedutor sucumbir perante uma jovem prostituta que nitidamente só joga com ele é engraçado por subverter a figura que permanecia em nosso imaginário. O outrora conquistador se torna um homem amargurado e infeliz em sua própria existência.

É pena que Jacquot dê voltas em círculos a partir de certo ponto – assim como fizera com Casanova, sua esposa e Charpillon em uma sequência em um labirinto de arbustos – o roteiro dá as mesmas voltas e não avança. Logo o joguinho cansa.

Ao final, esta roupagem não diz muito a que veio e o personagem historicamente conquistador permanece muito mais interessante e rico em nuances do que o apaixonado Casanova.

 

Ecos (dir. Rúnar Rúnarsson) – Nota 5,0

Não deixa de ser interessante a proposta do diretor Rúnar Rúnarsson em reunir 56 fragmentos de histórias de seu país de origem, a Islândia, todos passados num dos feriados mais calorosos e familiares do ano: a noite de Natal e a virada do Ano Novo.

Rúnarsson consegue expor a sensação de distanciamento de um dos países mais isolados do mundo. As histórias não conversam entre si e isso é o que mais nos mantém distantes do próprio longa. As histórias que tem breve duração – pouco mais de 1 minuto – vão desde um momento com certo humor, como numa discussão por uma vaga de estacionamento, a um belo momento de nascimento de um bebê, sempre captadas por uma câmera estática como se fosse uma câmera em um tripé esperando o momento exato para fotografá-los.

Em suas particularidades, o longa acaba sendo um registro de momentos isolados que nos mantém alheios àqueles personagens, talvez seja mesmo como um eco, a força daquelas imagens só existia no momento em que foram captadas, e agora, reunidas de maneira aleatória, já não têm a mesma força ou ainda insistem em ecoar.

 

Pertencer (dir. Burak Çevik) – Nota 5,0

Não deixa de ser curiosa a forma com que Burak Çevik decide contar esta história pesada que remete a um fato que aconteceu em sua própria família. Quando Çevik ainda era criança, sua avó foi assassinada pela própria filha e pelo namorado por sua oposição ao namoro entre ambos. As semelhanças com o caso Richthofen saltam na memória da audiência brasileira.

É desta história cruel que Çevik tira essa inspiração quase doentia e, pra piorar, a forma com que ele a transforma em ficção torna a experiência ainda mais difícil de ser encarada. A curta duração pelo menos ajuda a deixar a narrativa menos pedante, já que na primeira meia hora um narrador ausente conta o passo a passo para a realização do crime enquanto diversas imagens permanecem estáticas no quadro. Ficamos sabendo por meio desta voz todo o modus-operandi da dupla de namorados, porém, as reais intenções ou as consequências daquele crime, assim com o fator dramático e emocional, são praticamente abandonados em função do exercício ao qual Çevik se propõe.

Na segunda metade, os personagens ganham rostos, estamos na noite em que o casal se conheceu. Acompanhamos um romance jovial como outro qualquer. A narrativa tão oposta desta segunda metade acaba não suprindo o que faltava na anterior, tudo ainda parece um jogo de cena ou até mesmo puro fetiche mórbido do diretor. Ao final, tudo parece inconclusivo.

 

Teerã: Cidade do Amor (dir. Ali Jaberansari) – Nota 4,0

O maior mérito desta ingênua comédia dramática iraniana é nos envolver com três personagens bem incomuns em comparação ao que estamos acostumados a ver da nata que chega de lá. Mais interessante ainda que um destes personagens seja um personal trainer introspectivo em seu dilema homossexual, rara abordagem em se tratando de uma sociedade tão repressora.

É pena porém que o diretor Ali Jaberansari permaneça no campo da comédia e da superficialidade nos três arcos, a exemplo da atendente da clínica de estética que sempre recorre ao sorvete em suas frustrações românticas, gerando consecutivamente o mesmo momento de alívio cômico que na realidade acaba se tornando penoso.

Muito água com açúcar e com diversas oportunidades desperdiçadas de dar a seus personagens maior profundidade, Teerã: Cidade do Amor joga um olhar piedoso e melancólico para uma cidade e personagens ainda muito reprimidos em se expor afetuosamente.

 

 

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