Review | O Irlandês

Martin Scorsese é uma lenda viva do cinema. Conhecido por qualquer um que se interesse o mínimo pela história do cinema, ele fez parte da Nova Hollywood dos anos 70, junto de nomes como Francis Ford Coppola, George Lucas, Steven Spielberg e Brian De Palma, ajudando a moldar o cinemão norte-americano e, quase 50 anos depois, é um dos poucos da turma que ainda está em atividade. Para os menos interessados pelos bastidores e pela história de Hollywood – sem julgamentos – Scorsese é mais conhecido como “o cara que falou que a Marvel faz parques de diversões e não cinema de verdade”.

A verdade é que Scorsese não é nada ingênuo. É possível imaginar o diretor sentado em sua mesa, com suas sobrancelhas grossas e arqueadas, se vendo à deriva numa época da qual não pertence mais. Os blockbusters de super-heróis dominam o cinema e as bilheterias, e o cinema que Scorsese ajudou a revolucionar há décadas agora parece fadado, em suas próprias palavras, a “produtos perfeitamente manufaturados para o consumo imediato”. Esta falta de uma assinatura artística – e aqui não digo cinema de arte, mas sim a visão de alguém por trás destas obras – é o que mais incomoda o diretor.

Por isso, Scorsese encontrou um jeito mais fácil de chegar às pessoas, entrando diretamente na casa delas por meio da Netflix, que deu liberdade total ao diretor para fazer O Irlandês. E como diria um certo personagem de um filme de Spielberg, Scorsese não poupou despesas, aliás, nem tempo. Os mais de 200 minutos deixam claro que a história, baseada no livro I Heard You Painted Houses, de Charles Brandt, vai a fundo em seus personagens.

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Marcado por seus “filmes de máfia”, Scorsese volta ao tema que não abordava desde Os Infiltrados, de 2006 – pelo qual ganhou seu tão almejado Oscar – novamente em um longa com super elenco e ares de superprodução. Já é possível pintar O Irlandês como um dos grandes favoritos ao Oscar 2020, devendo colecionar várias indicações. Resta saber se a Academia irá relevar o fato de este ser um filme feito para o streaming – lembrando que Roma, de Alfonso Cuarón, venceu vários prêmios este ano, mas o maior da noite ficou nas mãos daquele filme com cara de história dos anos 90.

Jimmy Hoffa

O Irlandês é contado sob a perspectiva do veterano da Segunda Guerra Mundial Frank Sheeran (Robert De Niro), um assassino profissional que trabalhou ao lado de algumas das personalidades mais marcantes do século 20. O filme narra um dos grandes mistérios não resolvidos da história americana – o desaparecimento do lendário líder sindical Jimmy Hoffa (Al Pacino) – e se transforma em uma jornada monumental pelos corredores do crime organizado: seus mecanismos, rivalidades e associações políticas.

Apesar de muitos torcerem o nariz para um filme de três horas e meia – por isso, a oportunidade de ser visto em casa é bem avaliada por muitos – O Irlandês é cinema em estado emocional, um exercício de empatia, como o próprio diretor gosta de fazer, com assinatura e um olhar voltado mais para seus personagens do que para as pirotecnias que o cinema de hoje permite fazer. Embora estejam lá os planos-sequência, explosões e tiroteios que Scorsese filma brilhantemente.

Os Bons Companheiros

Ironicamente, O Irlandês recorre aos efeitos especiais para rejuvenescer a velha guarda. Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci recebem boas doses de CGI em suas rugas e marcas do tempo, num resultado impressionante que mantém as expressões faciais de todos em perfeitas condições, permitindo a Scorsese se aproximar de seus rostos sem que o espectador se distraia com truques mal feitos, nos permitindo olhar no fundo dos olhos de cada um deles e sentir seus medos, raivas e angústias. Outro ponto positivo: Scorsese nos dá o gostinho de vermos novamente Al Pacino e Roberto De Niro contracenando – o que não acontecia desde 2008, com As Duas Faces da Lei – além de trazer de volta o sumido Joe Pesci em um papel digno de sua grandiosidade.

O Jimmy Hoffa de Pacino surge mais humanizado. Trunfo do ator, que consegue oferecer nuances dramáticas a uma figura sindical que já fora interpretada por Jack Nicholson em Hoffa, de 1992, dirigido por Danny DeVito, mas que se sustentava mais na base dos discursos do que no drama de seu personagem – algo que nem mesmo DeVito, atuando também como coadjuvante, conseguiu sustentar. A teimosia de Hoffa é um contraponto para o zelo do “irlandês” de De Niro, e é assim que o laço entre ambos vai se solidificando cada vez mais, atingindo níveis melodramáticos em seu terço final.

Joe Pesci vive um respeitado chefão de máfia, personagem do tipo que era habituado a fazer – não à toa tem um Oscar por Os Bons Companheiros – e aqui, como bem diz o personagem de De Niro a certa altura, ele surge como dono de alguma coisa, ou seja, seu Russell Bufalino é de uma presença que impõe respeito sem precisar assassinar ou falar muito sobre si. Nem mesmo se apresentar é preciso. Méritos para Pesci, que volta para os holofotes com louvor, lugar de onde nunca deveria ter saído.

Protagonismo

De Niro também volta com o protagonismo que lhe fez fama, entregando um personagem forte e digno do título de um filme como há anos não fazia. E só mesmo alguém da estirpe de Scorsese para lhe proporcionar momentos tanto divertidos quanto sofridos, além de diálogos impressionantes. Ao acompanharmos tudo por meio de seu olhar – e também por sua narração, que nos apresenta a história por meio de flashbacks – passamos a fazer parte da família de Sheeran… e é justamente aí que se esconde o único ou maior problema do longa.

Por mais que Scorsese transforme seu “filme de máfia” em um retrato íntimo de homens poderosos, é ao sabotar as personagens femininas – principalmente Peggy (Anna Paquin), filha de Sheeran – que o diretor se mostra preso a uma época brutalmente masculina e a seu jeito de fazer cinema – que tecnicamente atinge excelência sim, mas que poderia dar mais atenção às mulheres, ainda mais por dar margem a isso. A filha passa o tempo todo fitando o pai, mas os interesses do diretor permanecem no protagonista de sua história. É compreensível, embora não seja fácil entender os motivos de colocar Paquin numa personagem tão negligenciada.

O Irlandês pode ser visto como mais uma das “armas” de Scorsese contra os filmes que têm dominado as salas de cinema, assim como também serve para mostrar que os serviços de streaming podem ser poderosos aliados para que cineastas renomados como ele consigam fazer filmes sem imposições de estúdios ou cortes e refilmagens – imposições que ele criticou duramente em suas últimas declarações.

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