Review | Babilônia

A 100 quilômetros ao sul de Bagdá, no Iraque, encontram-se as ruínas da capital da antiga Mesopotâmia, a Babilônia, um dos berços da civilização. Foi lá que construíram a Torre de Babel e o Código de Hamurabi, um dos primeiros conjuntos de leis escritas, que influenciara a organização de outras sociedades.

Quatro mil anos depois, a uns doze mil quilômetros dali, quem mais retroalimenta o comportamento das pessoas ao redor do mundo é Hollywood, através do cinema, na costa oeste da América. O local, com seu produto de arte-entretenimento, atrai de forma magnética pessoas fascinadas de todos os tipos e lugares.

Uma dessas pessoas é o jovem diretor Damien Chazelle, que migrou do outro lado do continente, de uma cidade próxima a Nova York, para explorar em seus filmes na Califórnia as reflexões de sua apaixonada e desgastante jornada profissional, através de belas homenagens e críticas ferrenhas em metalinguagens cinematográficas.

Foi assim com o aclamado musical La La Land, de 2016, que lhe rendeu o Oscar de Direção aos seus 32 anos de idade e é assim mais uma vez com Babilônia, que entra em cartaz nos cinemas na próxima quinta-feira, 19 de janeiro, dia do aniversário do diretor.

Uma Comédia Épica

Esse épico histórico de comédia dramática só faz alusão à cidade homônima pelo título e alguns simbolismos, visto que a história trata do período de transformação do cinema mudo para o cinema falado entre o fim dos anos 1920 e o início dos anos 1930.

Em meio a sexo, drogas e muito jazz, acompanha-se a ascensão e queda do produtor Manny Torres (Diego Calva), dos atores Nellie LaRoy (Margot Robbie) e Jack Conrad (Brad Pitt), da letrista e performer Lady Fay Zhu (Li Jun Li) e do músico Sidney Palmer (Jovan Adepo). Além deles, destaca-se que há uma curiosa aparição, ao final, do bizarro James McKay (Tobey Maguire).

Ainda que almejasse ser uma estrela, é o acaso que torna a sonhadora interioriorana Nelly uma atriz renomada. Mas são seu talento e comportamento que ditam por quanto tempo. Um igual acaso positivo ocorre com o mexicano Manny e o mesmo estigma de relevância é sofrido pelo astro Jack.

Suas histórias se cruzam, se separam, se voltam e ficam serpenteando, enquanto outros artistas adentram suas vidas, mantendo um dinamismo narrativo bastante atrativo, ao longo das mais de três horas de duração do filme.

A Atriz interpretada pela Atriz

É sensacional apreciar o poder de atuação posto à prova tanto da fictícia Nellie LaRoy quanto da própria Margot Robbie, que a interpreta. É realmente incrível como a atriz consegue no mesmo minuto emocionar e debochar da audiência, arrancando suspiros e risadas. Ela parte com muita facilidade e real convencimento das lágrimas ao sorriso, da sedução ao surto esbravejado e da elegância ao ridículo tresloucado.

É muito fácil crer o quanto Margot deve ter se deliciado enquanto artista, podendo explorar tantas facetas e emoções assim em um mesmo filme. Dá até para imaginar os olhos do diretor brilhando, ao extrair essas atuações de forma frenética.

Há uma cena em que uma diretora coordena Nellie em uma filmagem, de forma quase hipnotizada, não se importando por um outro cenário pegando fogo, afinal, o que importa naquele momento, acima de tudo, é a construção da arte.

E é esse pensamento de tudo por um bem maior que percorre o filme, desde a visão mais humorística até o drama carregado de reflexões. Até que ponto os sacrifícios valem a pena? Qual o limite entre alimentar algo e se deixar ser engolido por isso?

O Elefante na Sala e as Reflexões do Diretor

Aliás, as reflexões e mensagens são muitas. Chazelle fala da síndrome de vira-latas do colonizado e propõe de forma bastante assumida no roteiro (e bem fluida) que a revolução do cinema não pode ser somente técnica, mas social.

Deve-se dar espaço a latinos se expressarem, protagonismo a negros na composição de suas artes e histórias, liberdade a mulheres se comportarem como quiserem, valorização a idosos com seus ofícios e acolhimento a LGBTs poderem conviver em paz, na tela e além dela.

Isso é pautado porque o Cinema seria diverso em essência, mas sequestrado por homens poderosos de um perfil singular e encaixotado exclusivamente sob seus pontos de vista, com um rigor técnico excessivo, focado unicamente no ganho financeiro, que atropelaria a criatividade.

Essa sensação desconfortável de opressão e deslocamento é tema recorrente na filmografia do diretor de Babilônia, seja em Whiplash (2014) ou em O Primeiro Homem (2018). Eis, portanto, o que o motiva à legítima identificação com minorias.

Mas esse filme coloca, literalmente, o elefante no meio da sala. Ele desbanca o glamour e escancara as hipocrisias e fragilidades desse mundo tão vislumbrado, jogando na sua cara que o teatro desdenhava com empáfia dessa (até então) nova forma de arte e suas crises com adaptações tecnológicas.

O Cinema fazendo Autorreferências

Apesar da acidez crítica e da carga dramática pessimista, os atos se destacam mais por serem divertidos, passando dos bastidores duma gravação para a exibição das obras finais ao público, contemplando a curiosa reação eufórica da audiência mediante o histórico primeiro filme falado, O Cantor de Jazz, em 1927.

Quem não o conferiu ainda, terá um gostinho de apreciar um trecho da obra dentro desse filme. Visto no cinema (para onde Babilônia foi feito e onde pede-se que seja visto), esse momento, dentre outros recortes de outros filmes, acentua a emoção transmitida.

Cinema Paradiso (1988) é, para muitos, a grande homenagem que o cinema faz a si mesmo. Crepúsculo dos Deuses (1950) e O Artista (2011), da Warner, trataram, a seus modos, da transição do cinema mudo ao falado. Isso não impediu que Martin Scorsese também abordasse o tema com A Invenção de Hugo Cabret (2011).

Agora, entre 2022 e 2023, ele volta a ser objeto explorado pelo olhar de vários diretores e estúdios (talvez como contraponto à expansão dos serviços de streaming, ainda mais após a quarentena  da Covid-19). Além de Babilônia, da Paramount, Sam Mendes (Beleza Americana, 1999) lança seu Império da Luz com a Searchlight (subsidiária da Disney) e Steven Spielberg, com a Universal, Os Fabelmans (confira nossa crítica aqui).

É sempre interessante saber o que o Cinema tem a dizer sobre si. Então, não sendo genérico e tendo estilo próprio, que surjam até mais filmes afins. E estilo é o que não falta aqui.

A Bela Sintonia da Equipe Técnica

Mesmo com a já manjada giradinha rápida da câmera pra lá e pra cá, do sueco Linus Sandgren, ele ilumina os cenários com a eficácia de um sol natural se pondo e enquadra bem os atores, passando o tom de grandiosidade dos filmes, tanto os retratados quanto esse em questão.

Mas é a edição pontual do Tom Cross que dita bem o ritmo, ora descolado, ora sério, ora ambos, gerando tensão, como o mero caminhar repetitivo de Nelly, para gravar uma cena.

Como de praxe nos filmes de Chazelle, tudo é amplificado pela trilha sonora, que se torna o foco em certas ocasiões. Essa até ganhou o Globo de Ouro neste domingo, dentre as demais quatro indicações do filme à premiação.

Justin Hurwits mescla o trabalho de seus músicos por trás das cenas com os que aparecem nela, tocando jazz, tornando todo o som ambiente parte de uma grande festa. Ele revisita trechos de clássicos, como Uma Noite no Monte Calvo de Mussorgsky e até cria uma constante crescente que remete ao Bolero de Ravel.

O compositor brinca com instrumentos orientais e com as notas da própria trilha criada, que vão da graça à melancolia, conforme o instrumento e o ritmo tocados.

Desde antes da Cidade de Estrelas (em La La Land) à novamente referenciada Los Angeles, agora como Babilônia, esse grupo de pessoas bem sintonizadas entrega um ótimo trabalho, fincando sua marca no Cinema.

A Babilônia do Passado, a do Presente e a do Futuro

Hoje, a real Babilônia é só um grupo de ruínas. Mas, usando a ideia de uma fala do filme, o tempo a coroou à medida de sua importância na história e isso a tornou eterna. Atualmente, Babilônia pode ser um filme controverso, Hollywood pode estar em crise, a arte pode não saber para onde vai, esse texto pode ser só mais um review.

As capitais do mundo mudam e um dia, quando não estivermos mais aqui, alguém ainda vai nascer, se deparar com tudo isso que foi feito e, assim, eternizar essas marcas deixadas outrora.

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