Review | O Assassino

O Assassino e a Arte de Matar

Antes de tudo, é muito bacana ver que mais uma pérola criada exclusivamente para os serviços de streaming nesta temporada conseguiu espaço em um prévio circuito de exibição comercial em salas de cinema.

De forma tímida – porém maior do que em experiências anteriores – O Assassino, mais uma obra brilhante de um dos maiores cineastas da contemporaneidade, David Fincher (Seven: Os Sete Crimes Capitais, 1995), pode ser conferido nas telonas, para quem almeja experimentar a imersão que somente o cinema traz. 

O longa-metragem de duas horas de duração e dividido em seis capítulos é uma tradução em audiovisual da essência de uma história em quadrinhos homônima, sobre um matador de aluguel, criada pelos franceses Matz Nolent e Luc Jacamon em 1998 e publicada até 2014.

Apesar de experiente, o protagonista falha em uma missão em Paris, o que desencadeia uma resposta negativa de seu cliente. Assim, uma nova missão se inicia, percorrendo parte do globo, passando pela Europa, República Dominicana e chegando a Chicago.

 

Excelência na direção e na atuação

A premissa é bastante simples, mas Fincher a faz com toda sofisticação e perfeccionismo que está acostumado. Tão detalhista quanto ele é o “seu” assassino, interpretado meticulosamente pelo deslumbrante alemão Michael Fassbender.

Através de suas reflexões diegéticas, respiração e movimentação bem elaboradas, o assassino reafirma constantemente a si próprio que deve se ater ao plano, sem fraqueza ou uma possível oscilação por demonstração de empatia.

No entanto, somos nós, espectadores, que acabamos criando empatia por ele.

Eis um ponto de grande destaque na filmografia do admirável Fassbender, nessa parceria capaz de expor todo o seu talento.

Parceria que pode render mais frutos e é tão digna quanto as que o diretor fez outrora com o americano Brad Pitt e que o ator alemão fez com Steve McQueen em 2011 para Shame e com Danny Boyle em 2015 para Steve Jobs.

Trabalhos que, quando bem apreciados, se tornam um eclipse a outros mais famosos: Assassin’s Creed, X-Men e Alien. Produções mais robustas, mas para públicos diferentes.

Como matar se torna arte no filme

Fincher está acostumado a gravar a mesma cena dezenas e até uma centena de vezes, extraindo um nível de atuação muito elevado de seu elenco.

Na mesma medida de qualidade está o excelente design de som, contribuindo para um alto grau de verossimilhança do que se ouve (ou presume-se ouvir) no mundo concreto. Isso ocorre desde as pegadas molhadas em sangue até o alcance sonoro das incríveis músicas do The Smiths, alterado conforme o ponto de vista retratado (abafado quando observamos o assassino com fones e evidente quando nosso olhar se funde com o dele).

Como a voz do Morrissey inevitavelmente toma muita proeminência, a trilha instrumental dos oscarizados Trent Reznor & Atticus Ross acaba se adequando ao preenchimento de outros vazios menos angustiantes. E eles ainda dividem espaço com um toque memorável de Portishead, mas não deixam de ser eficazes para a proposta em questão.

Tão elegantes quanto, são os jogos de luz e sombra de clima noir da fotografia e a montagem e edição do produto final, dinâmica como um videoclipe na abertura e tensa em cenas com ágeis trocas de quadro com esmaecimento repetitivo por um breve momento. Tudo isso reafirma uma marca estilística funcional e bastante sedutora, presente em boa parte dos doze filmes de Fincher.

Atores de outrora e atrizes de agora

Cinéfilo apaixonado, o diretor faz referências à imagética história cinematográfica. Aqui são bem nítidas e muito bem-vindas as experimentações com a poética de O Samurai, de Jean- Pierre Melville, estrelado pelo belíssimo Alain Delon em 1967, e toda a cena inicial voyeurista advinda da Janela Indiscreta, do mestre Alfred Hitchcock, com o galã icônico James Stewart, em 1954.

Indo além dessas figuras masculinas, mas voltando ao “nosso” filme, ressaltam-se as breves, mas marcantes, participações da brasileira também nascida na Alemanha, Sophie Charlotte (Meu Nome é Gal) e da britânica Tilda Swinton (Constantine) em depoimentos responsáveis por levar a trama a novos episódios a serem desbravados pelo assassino.

Cinema vs. Streaming?!

A Netflix, expoente do catálogo digital de filmes, acena cada vez mais para o público e para o mercado que não tem a intenção de substituir o cinema, mas de ser reconhecida nele por seus pares, ao contrário do que ainda muito se especula.

Há anos, algumas de suas produções exclusivas têm sido lançadas oficialmente em festivais de cinema, como o de Veneza, e as destacadas pela crítica têm passado brevemente em salas selecionadas de capitais econômicas do mundo, preenchendo o requisito para indicações a premiações como o Oscar, para só então estarem disponíveis online.

Ainda é cedo para especular se esse será o destino de O Assassino, em alguma categoria. Independente disso e do óbvio intuito de ampliação do leque de arrecadação financeira da empresa de entretenimento audiovisual, exibir um Fincher no cinema, ainda que brevemente, é um gesto de valorização de seu próprio acervo e também de todo seu público.

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